Desde que esbarrei no Noir ele se tornou meu gênero cinematográfico preferido. Tudo nele é atraente: os tempos naturalmente charmosos, regados a drinques e cigarros, ou pela inversão moral que faz as virtudes raras a ponto de estarem em extinção. Emoções fortes estão enraizadas no contexto histórico trágico do período de guerra e pós-guerra, resultando espontaneamente numa onda de filmes que apenas refletem sua época, nomeados “films noir” só anos depois por críticos franceses. Este é um território onde as convenções de gênero clássicas e o romantismo não sobrevivem, onde a mulher deixa de ser uma figura de virtude para se tornar a ruína do homem desavisado; sombras fortes explicitam a dualidade moral em jogo e dão origem a imagens que extraem o melhor da fotografia em preto e branco. Esta lista traz 20 dos melhores Noir do período clássico que tive o prazer de assistir até o momento.
25. White Heat (Fúria Sanguinária), 1949
Direção: Raoul Walsh
Parte do meu interesse por “White Heat” era por ele trazer James Cagney de volto ao seu clássico papel de gângster. Agora com 51 anos, quase 20 a mais do que tinha em de “The Public Enemy“, o ator desperta curiosidade sobre como ele se sairia, especialmente para quem não acompanhou tanto sua carreira nesse período. Na verdade, “White Heat” vinha com um bônus de ser frequentemente elogiado como um ótimo Noir e também uma excelente performance do ator, então acabou servindo como um incentivo extra para assistir esse antes do resto da sua carreira . E a obra de fato faz jus à sua reputação. Ainda que não esteja perto do topo da lista do gênero, ele mostra qualidades suficientes para se colocar entre os destaques.
Não surpreendentemente, é a performance e a escrita do personagem de Cagney que brilham em uma obra que em muitos pontos apresenta as convenções tradicionais do Noir de forma pouco original, como a femme fatale de Virginia Mayo. Ela é um ponto fraco por si, muito longe de se destacar entre outras do gênero, e ainda mais quando comparada com o protagonista. Ainda assim, as coisas funcionam bem o bastante e entregam um filme imerso na insanidade e fúria imprevisível de seu protagonista, uma camada psicológica em cima das partes mais reconhecíveis de um Noir. Não diria que é um filme obrigatório para os fãs do gênero, porém dificilmente vai decepcionar quem der uma chance.
24. Notorious (Interlúdio), 1946
Direção: Alfred Hitchcock
Toda vez que se fala de Film Noir e Alfred Hitchcock, há uma discussão sobre o que qualifica alguns de seus filmes produzidos no período clássico como parte do gênero ou não. De acordo com a Wikipédia, há apenas consenso sobre “Shadow of a Doubt“, “Strangers on a Train“, “The Wrong Man” e este aqui, “Notorious”, mas é possível encontrar outro deles aqui mais adiante. Não vou me demorar nessa polêmica, até porque ela está em praticamente todo lugar, e sim focar no porquê “Notorious” é um excelente filme, digno de estar numa lista como essa. Mais do que ser um exemplo que trabalha bem os elementos clássicos do gênero, ele possui excelência por si e em praticamente qualquer elemento a que se prestar atenção.
Seja pela direção de Alfred Hitchcock, sutil e efetiva na construção de uma narrativa de qualidades invisíveis, a belíssima fotografia de Ted Tetzlaff ou a química de Cary Grant com Ingrid Bergman, há razões em bom número para elogiar “Notorious”. Usando o visual como referência, encontra-se facilmente uma conexão ao menos estética com o gênero que é aprofundada em outros elementos narrativos, principalmente a relação ambivalente do casal principal nunca fixa em uma constante previsível do que virá pela frente. De qualquer forma, eis um dos grandes suspenses de Hitchcock com elementos de espionagem e um toque de Noir deixando tudo um pouco mais soturno do que às vezes se encontra nas obras do diretor, em especial no que envolve romance.
23. The Killers (Os Assassinos), 1946
Direção: Robert Siodmak
Baseado em um conto de cerca de 3000 palavras por Ernest Hemingway, “The Killers” o adapta em sua sequência inicial e o expande no resto de sua extensão de 103 minutos em uma história sobre assassinos profissionais contratados para matar um homem que já espera a morte. Mas nem todos estão satisfeitos com as circunstâncias do assassinato, não Jim Reardon, que tem toda intenção de mergulhar fundo para descobrir a história inteira. Eis um xereta inocente se intrometendo em um assunto que não é seu, metendo o nariz num assunto envolvendo crime e morte e, é claro, uma mulher. Tinha de haver uma mulher envolvida. Comparado com outros da lista, “The Killers” é um exemplo mais tradicional do gênero.
Podendo ser chamado “Flashback: O Filme” sem problema algum, “The Killers” se estrutura quase inteiramente na base de retornos ao passado conforme a investigação procede. Conhece-se mais sobre o falecido e no que ele estava metido até que tudo começa a se conectar e os buracos se fecham. O roteiro nunca cai no clichê dos flashbacks expositivos e sempre traz informação em doses homeopáticas para que o mistério seja sempre um elemento dominante, chegando a complicar a desinformação ainda mais com cenas novas que não acrescentam muito ao que se busca descobrir. No que a obra se destaca em sua narrativa elegante, infelizmente ela não consegue igualar com seus personagens pouco cativantes, o que estraga um pouco o potencial de estar ainda mais alto na lista.
22. Laura, 1944
Direção: Otto Preminger
Entre todas as características mais populares que definem o Noir, a figura da mulher é uma que nem sempre é lembrada. E se é, acaba sendo por conta do papel da femme fatale: uma mulher dominadora, forte, sedutora e que causa todos os problemas na vida do protagonista. Em alguns casos, em contrapartida, é um tanto diferente. “Laura” é um dos filmes que traz a mulher como uma presença praticamente sobrenatural e mitológica, que influencia o protagonista e outros personagem sem sequer estar presente. É isso que acontece aqui quando o protagonista passa a investigar um assassinato cometido no apartamento de Laura, uma linda mulher cujos mistérios acerca de si acabam cativando o personagem principal. Aos poucos se descobre o que aconteceu realmente e quem era aquela mulher.
Incrível mesmo é ter a oportunidade de ver em primeira mão todas as histórias sobre a garota. Um de seus amantes do passado faz questão de distribuir elogios aos montes sobre ela e de colocá-la no pedestal mais alto de todos. Então vêm os flashbacks de suas histórias com Gene Tierney mostrando em carne e osso por que nenhum daqueles engrandecimentos era leviano. Sua presença de tela é comparável à de Rita Hayworth em “Gilda“, tão forte que rouba qualquer cena em que está presente por ser de fato tão bonita, enigmática e cativante como dizem. Infelizmente, o mistério principal da história por vezes desanda e acaba sendo resolvido de um jeito cujos detalhes não ficam bem claros. Não obstante, esta é uma experiência a ser lembrada por ter uma das grandes mulheres do gênero numa história sobre estranhas obsessões.
21. Touch of Evil (Marca da Maldade), 1958
Direção: Orson Welles
Talvez uma escolha controversa para um lugar tão baixo na lista, ainda mais quando se trata de Orson Welles, mas vale lembrar que em uma lista de melhores não há nada ruim ou mediano que seja. “Touch of Evil” é muitas vezes considerado o último Noir do período clássico e por isso, além de seu diretor, costuma ser um dos mais conhecidos. A abertura concretiza essa popularidade com um incrível plano sequência de mais de 3 minutos envolvendo uma bomba plantada num carro; apenas uma sequência reafirma o status de Welles como um diretor competente e introduz a trama do filme inteiro. Numa cidade de fronteira, um carro sai do lado mexicano e explode do lado americano, capturando o interesse de um policial de cada país, cada um com seu modo de agir bem diferente do outro.
O resultado é uma trama complexa que transcende a investigação inicial do atentado e envolve um amplo embate moral entre dois representantes da lei que batem cabeças sobre o que é certo. Embora o bom roteiro conte com a exímia direção de cena de Welles — uma qualidade inquestionável, como a própria introdução mostra — sua direção do elenco deixa um tanto desejar. O diretor deu uma maior liberdade a seu elenco, que reescreveu diálogo e improvisou cenas mais livremente do que costuma acontecer, resultando, imagino, na artificialidade e bidimensionalidade de seus personagens claramente inferiores ao grande Welles em um dos papéis principais. Uma única pedra no sapato deste longa de um grande diretor.
20. The Lady from Shanghai (A Dama de Shangai), 1947
Direção: Orson Welles
Além de seu um Noir dirigido e estrelado por Orson Welles, “The Lady from Shanghai” também tem fama de ser um filme que não faz sentido. Mas isso não é verdade. Assim como vários itens dessa lista, o enredo se estrutura como um mistério. Neste caso, tudo começa a dar errado quando Michael O’Hara, um marinheiro de poucas preocupações, conhece uma mulher que chama sua atenção demais da conta. Talvez esteja apaixonado, mas ele prefere negar e dizer que é apenas um magnetismo casual. Mal sabia que andar perto daquela mulher e os indivíduos repugnantes ao seu lado traria uma série de problemas.
Até aqui, nada de muito novo. O diferencial desta história é o fato dela deixar sua audiência no escuro por um bom tempo até começar a revelar quem são os responsáveis por certos atos e quais são as intenções de alguns elementos. Até chegar lá, o espectador é introduzido àquilo que parece ser mais uma óbvia história de homem que se apaixona e se encrenca numa tacada só. Adicionalmente, o próprio Orson Welles torna a experiencia toda agradável por fornecer um ponto de vista único e carismático de toda aquela situação difícil. Ao contrário de vários personagens estúpidos e cegos pela ganância no gênero, O’Hara é um homem esperto que constantemente tenta entender para onde o estão levando. Sendo um bom filme sem dúvida alguma, isso ainda não foi o bastante para o produtor da obra, que fez deste mais um dos filmes de Welles que foi muito modificado.
19. Sweet Smell of Success (Embriaguez do Sucesso), 1957
Direção: Alexander Mackendrick
Este pode não ser o melhor filme da lista, mas certamente é o que apresenta o ponto de vista mais característico entre tantos detetives particulares, malandros e policiais. Associar o Noir com o detetive que busca respostas num caso que exala o perfume da fraude é comum o bastante, com algumas das obras mais características colocando o protagonista nessa posição. Já sabemos que o mocinho nunca é tão mocinho no Noir, mas o que acontece quando o protagonista é um capanga da pior estirpe? “Sweet Smell of Success” coloca o espectador nos sapatos de um vilão, não aquele que tem o poder em suas mãos, e sim o que lambe o sapato alheio por uma possibilidade de ser mais que um fracassado de terno e gravata. Tony Curtis interpreta o infame da história, o lacaio que trabalha para um magnata da imprensa e quer a todo custo o sucesso. Ele não sabe o que é esse sucesso ou como vai chegar lá, mas só o doce cheiro da perspectiva de ser um figurão já é o bastante para colocá-lo em seu caminho.
O roteiro e a direção ligeira de Alexander Mackendrick não perdem tempo, fazendo exatamente como seu protagonista que não tira dois momentos para respirar em sua frenesi ambiciosa. Já no começo o espectador é jogado em eventos dos quais não entende quase nada, indo se acostumar apenas no decorrer do trajeto. Meu único problema é o ritmo ser tão focado em progredir que parece atropelar a estrutura narrativa quando ela é mais importante, matando um pouco dos momentos mais fortes. Mesmo assim, atuações fortes o bastante para despertar o ódio do espectador e um roteiro competente, em sua maioria, mantém sólida a posição desse filme no panteão dos grandes Noir.
18. The Third Man (O Terceiro Homem), 1949
Direção: Carol Reed
Elogiar a fotografia numa lista de Noir pode parecer uma grande redundância quando boa parte dos citados apresenta um cuidado especial com esse elemento. Mesmo os exemplos do gênero que não seguem os preceitos à risca — como os que emprestam elementos de outros gêneros —conservam pelo menos a estética tradicional. No entanto, “The Third Man” merece ser mencionado como uma conquista maior entre tantos bons exemplos, contando com os ângulos inclinados da direção de Carol Reed e a fotografia excepcional que tornam a parte visual um dos maiores atrativos.
Considerando a obra como um produto audiovisual, devo expressar meu descontentamento com a parte relacionada ao áudio do termo, pois embora entenda a idéia de usar um instrumento incomum como a cítara para compor a trilha sonora, ela simplesmente não funciona bem. A mixagem de som frequentemente coloca a música absurdamente alta e a torna um incômodo, ao contrário de uma ferramenta narrativa. Por outro lado, não posso nem pensar em fazer o mesmo tipo de crítica ao resto dos elementos, em especial ao roteiro e sua abordagem sutil da consigna do Noir. Diferente de outros filmes dessa lista, tudo aqui é administrado com tanta suavidade que a obra não se denuncia explicitamente como uma obra do gênero. É através das nuances, da análise do papel do protagonista e de como a trama se desenrola que tudo fica mais claro.
17. Ace in the Hole (A Montanha dos Sete Abutres), 1951
Direção: Billy Wilder
Onde o nome de Billy Wilder estiver escrito, é muito provável que o produto seja de muito bom gosto. Meu diretor preferido felizmente entrega seu melhor no gênero que mais gosto, uma ligação que talvez não seja coincidência e que “Ace in the Hole” faz questão de reforçar, usando o clássico diálogo afiado com uma adição importante ao contexto narrativo e social. Aqui o escopo é um pouco menor do que o costumeiro por se limitar à figura do protagonista como referência moral para a história inteira, diferente de outras obras que exploram o conceito em contextos mais abrangentes.
Chuck Tatum é um jornalista que vem de uma série de fracassos profissionais, demitido de 11 jornais pelos mais variados motivos e sem uma melhora à vista. Seu posto atual o coloca num pequeno jornal em Albuquerque, mas os olhos de sua ambição são abertos quando ele esbarra num acidente que causa polêmica e do qual ele pretende se aproveitar ao máximo. O estudo da moralidade se limita ao protagonista aqui, ele é o agente da desgraça e de todos os sentimentos fortes que aqui se encontram. Se surge algum ódio pela humanidade daqui é por causa da falta de limites de Chuck Tatum, interpretado por um enérgico Kirk Douglas. Caso o escopo reduzido seja visto como um problema, ainda há a carta na manga de Billy Wilder: a falta de virtudes do protagonista se encaixa como uma luva no Noir, enquanto todo o contexto explicita uma ferrenha crítica ao mundo do jornalismo inescrupuloso. Certamente uma obra que faz barulho.
16. The Harder They Fall (A Trágica Farsa), 1956
Direção: Mark Robson
É um crime tão pouca gente falar sobre “The Harder They Fall”. No máximo, alguém comenta sobre ele conter o último papel de Humphrey Bogart antes de sua morte aos 57 anos um ano mais tarde. Eu ter conhecido esse filme através de uma lista de filmes sobre boxe foi mais um motivo de choque ao rolar dos créditos quando vi quão bom a experiência foi. Bogart, como esperado, não decepciona em seu papel de protagonista, ainda que não seja algo para fazer frente aos seus grandes papéis do passado, como “Casablanca“. Em um esforço menos chamativo, por assim dizer, ele sustenta a obra como um personagem mais tranquilo que também serve de balanço moral para as coisas que acontecem ao seu redor. As pessoas barulhentas estão à sua volta, em interpretações de Rod Steiger e os capangas mal intencionados que andam com ele.
Eis mais um exemplo de crítica social na ótica fatalista do Noir, o estudo de um pedaço de realidade aumentada de forma similar a um pior cenário possível. O que poderia dar errado quando um jornalista influente que precisa de dinheiro se une a empresários inescrupulosos que chegam com a promessa desse dinheiro? Muita coisa. Mesmo assim, não diria que “The Harder They Fall” é um dos mais pessimistas dessa lista, estando mais perto de exemplos em que algumas coisas dão certo ou, no mínimo, há um pouco de ironia na conclusão para não deixar nem todos felizes, nem todos destruídos ao fim de tudo. Se essa lista servir de algo para alguém, que seja exaltar esse Noir frequentemente esquecido.
15. Night and the City (Sombras do Mal), 1950
Direção: Jules Dassin
O maior malandro da cidade se dá mal vez após vez em sua busca pelo sucesso. Harry Fabian já é conhecido por todos como o cara com o maior número de idéias fracassadas de todos — um artista sem arte, como o descrevem. Ele quer tanto estourar como um figurão que não enxerga o motivo de seu fracasso. A história é bem parecida com “Sweet Smell of Success“, com uma diferença vital: Harry Fabian não é uma pessoa má. Diferente de Sidney Falco e sua ausência total de virtudes, Fabian machuca mais a si mesmo que aos outros e, mesmo quando isso acontece, é sem querer, Como um criança com idéias demais e pouco cérebro para organizá-las, ele sai pelas noites de Londres em busca da grande oportunidade que nunca existiu. Trabalhar com a dualidade entre fracasso e sucesso torna “Night and the City” um dos grandes.
Prender-se ao fracasso de Fabian seria fácil o bastante, mas nem de longe renderia uma história tão interessante quanto a gangorra de altos e baixos que é sua vida. O fatalismo do Noir e a própria expressão no rosto do protagonista denunciam que ele é, e sempre será, um perdedor, porém por alguns momentos a trama faz a audiência esquecer isso e acreditar que talvez ele tenha uma chance de sucesso; especialmente pela atuação inspirada de Richard Widwark mostrar em certos momentos chave aquela fagulha de genialidade, o olhar do vira-late que dá a volta por cima. Mas como toda obra desse gênero, a glória tem vida curta. “Night and the City” constrói uma muralha apenas para provar seu ponto de que tudo que pode dar errado, dará.
14. The Lost Weekend (Farrapo Humano), 1945
Direção: Billy Wilder
Talvez “The Lost Weekend” seja o Noir mais questionável daqui. Nunca por sua qualidade, de forma alguma isso seria palpável com Billy Wilder na direção. A questão aqui é se este filme realmente se encaixa nos moldes do gênero com sua história diferente da maioria. Wilder conta a história de Don Birnam, um escritor falido que não escreve nada há muito tempo desde que entrou de cabeça num barril de uísque e nunca mais saiu. Sua esposa é a única que ainda acredita nele, o resto do mundo já cansou de vender fiado para ele e nunca ver a cor do dinheiro. “The Lost Weekend” não tem femme fatale, um crime, morais distorcidos, mas com certeza tem todo o pessimismo e derrotismo do gênero — além de ambientar o conflito do homem com sua realidade social, em menor grau.
Em outras mãos a história de um alcoólico poderia ter sido muitas coisas diferentes, de um vídeo institucional a um melodrama motivacional, muito diferente do vencedor de 3 Oscars que foi entregue. A jornada de Birman em direção ao fim do caminho é recontada pela escrita impiedosa de Wilder e Brackett, a clássica dupla de roteiristas, e conta com a incrível atuação de Ray Milland conforme ele passa por quatro dias seguidos de recaídas e testas encharcadas com o suor de bêbado. O roteiro não tem pena de seu personagem principal e o coloca nas piores situações que alguém buscando ficar sóbrio poderia passar, porém uma possível influência de estúdio interfere nessa espiral desastrosa com cenas melodramáticas demais para o que se construiu até o momento. Sem esse detalhe, esta poderia ser uma das obras mais pungentes de Wilder.
13. Gaslight (À Meia Luz), 1944
Direção: George Cukor
Quão bom um filme tem de ser para causar um impacto na sociedade? Às vezes qualidade não tem nada a ver com isso, pois impacto por si é um fenômeno altamente multifatorial. No entanto, quando um filme é responsável por cunhar um termo dentro do círculo de profissionais da saúde, então talvez signifique que acertaram em alguma coisa. “Gaslight” é tanto o nome deste filme como o de um termo que indica manipulação quando uma pessoa passa a questionar as capacidades de percepção, memória e atenção da outra; em outras palavras, quando alguém tenta deixar o outro louco ao questionar sua sanidade e fazê-lo acreditar nisso. Isso resume bem a obra em geral e seus maiores acertos, que giram em torno de uma relação patológica composta por tudo menos os sentimentos que realmente importam.
A história contada é a de Paula Alquist, que larga os estudos quando se apaixona e, depois do casamento, volta para morar na casa onde sua tia foi assassinada muitos anos antes. No entanto, todo o romance de antes se torna loucura quando o marido passa a agir estranho. Ela não demora para encontrar-se enlouquecendo quando passa a ver coisas, esquecer informações e perder objetos. Ou será que está mesmo? Como é possível ver, o amor cede lugar para a loucura e para a sociopatia num relacionamento; e são as ótimas atuações de Charles Boyer e Ingrid Bergman que fazem deste filme um show de atuações e tanto. De um lado, um homem determinado a ir longe para levar sua esposa ao limite da sanidade; de outro, a esposa demonstrando sofrimento psicológico de forma crível, parecendo como alguém que realmente está perdendo as rédeas de sua própria mente. Mesmo com uma falha inicial na construção da ambiguidade e do suspense, o conjunto de qualidades visto nas atuações faz tudo valer a pena.
12. Mildred Pierce (Alma em Suplício), 1945
Direção: Michael Curtiz
“Mildred Pierce” é o exemplo perfeito de como a identidade característica do Noir transcendeu sua própria mitologia e atingiu outros gêneros. Em vez do melodrama ser uma parte negativa e contrastante com o fatalismo, como acontece em “The Lost Weekend“, ele funciona como uma característica definitiva desta obra. Mildred Pierce é uma dona de casa dos Anos 40 como qualquer outra: espera o marido abusivo com a janta pronta e dedica todo seu tempo à família. Mas isso não foi o bastante para ele, que assume ter uma outra mulher e abandona o lar. Mildred então usa toda sua fibra moral para sustentar a casa sozinha, mas problemas surgem quando Veda, sua filha materialista e elitista, se acha superior ao capricho do trabalho e desconsidera os esforços de sua mãe.
Essencialmente, é a premissa de um melodrama, sem sombra de dúvida, com exceção de um assassinato misterioso que surge nessa relação complicada entre mãe e filha. Este é também um dos poucos detalhes que fazem deste filme um Noir, pois o livro original não tinha nada de suspense ou crime; podendo ser relacionado ao gênero apenas por sua análise ríspida da realidade americana no período de guerras. Felizmente, esta adição trouxe uma história boa por si para o universo negro do Noir, contando com um elenco fortíssimo e a direção de Michael Curtiz para explorar todo o potencial dramático de um dos filmes mais tocantes dessa lista.
11. Rebecca (Rebecca, a Mulher Inesquecível), 1940
Direção: Alfred Hitchcock
Existe certa discussão sobre os primeiros filmes de Hitchcock serem Noir ou não, mas “Rebecca” mostra sinais o bastante para ser um forte candidato. A estética fala por si, com as sombras bem definidas e evidentes sendo um dos aspectos melhor utilizados pela trama aqui. “Rebecca” conta a história de uma garota humilde que cativa o popular solteirão Maxim de Winter, bonito e cobiçado. Algo de estranho nele causa umas dúvidas, entretanto: ele tem mudanças bruscas de humor, é rígido com certas coisas e nunca explica nada para sua jovem esposa. Eventualmente fica mais claro que a causa de tudo isso é Rebecca, sua primeira esposa. Ela faleceu num acidente, mas continua aterrorizando a mansão e a vida da nova esposa com sua presença.
Esta é uma obra que trabalha a influência subjetiva que um mito pode ter. Sutilmente, esta obra usa o sombreamento brusco para mais que a estética ao mostrar como o passado ainda projeta sua influência na vida dos que habitam a mansão de Maxim. Um passado chamado Rebecca. Esta história faz um trabalho espetacular em cima da uma personagem que sequer aparece no filme, destacando-se por criar um caos psicológico e sórdido para todos os envolvidos. Um grande suspense vindo direto do Mestre com toques mais pesados e característicos do Noir, combinação que funciona espetacularmente.
10. Strangers on a Train, 1951
Direção: Alfred Hitchcock
Assim como outros filmes de Alfred Hitchcock, é difícil separar imediatamente seus clássicos suspenses dos tais filmes Noir. Alguns dos mesmos temas estão presentes em ambos junto da marca inconfundível do diretor nos momentos de suspense. “Strangers on a Train” é um destes filmes com fronteiras borradas, outro caso do inocente envolvido em uma trama criminosa sem nada a ver com ele. Essa mesma história começa aqui quando Guy Haynes, um popular tenista, encontra uma pessoa muito peculiar no trem. Bruno Anthony é seu nome e, entre vários assuntos desconfortáveis, ele se supera quando propõe uma troca de assassinatos. Cada um deles mata uma pessoa para o outro, assim fazendo um favor sem ter que se incriminar no processo. Problemas surgem quando Bruno mostra que estava falando muito sério ao tocar nessa proposta.
No geral, não tenho muito a dizer sobre “Strangers on a Train” além de que é um ótimo filme que acerta no que realmente importa. A premissa já é conhecida e comprovadamente uma que resultou em vários filmes bons do próprio Hitchcock. Seu desenvolvimento, por sua vez, lida diretamente com a parte psicológica de seus personagens conforme um lado, o psicopata, pressiona o cidadão comum a fazer o que ele quer e golpeia sua sanidade com ameaças e invasão de privacidade. Respectivamente, Alfred Hitchcock e Robert Walker são os destaques no uso eficientemente criativo de imagens e na interpretação do vilão da história, que coloca as engrenagens para rodar sozinho e introduz complicações na vida do protagonista nos piores momentos sem um pingo de remorso. Depois que a corda começa a apertar, ela não para mais até os últimos momentos.
9. Gilda, 1946
Direção: Charles Vidor
Talvez ela não seja a mais malévola das femme fatales, mas com certeza é a mais irresistível. Se existe uma perfeita demonstração das razões por que Rita Hayworth foi um simbolo sexual forte na Hollywood de Ouro, “Gilda” sem dúvidas ocupa este posto merecidamente. De quebra, é um dos melhores Noir que tive a oportunidade de ver, antes que me esqueça. Bizarramente, é uma surpresa agradabilíssima ver que conseguiram centrar uma produção inteira numa atriz sem sacrificar qualidade para isso. Especialmente porque isso acontece muito quando uma atriz é bonita e acaba por construir uma carreira de comédias românticas com outros rostinhos bonitos. Nada disso se encontra aqui. Nenhum filme estaria entre os 10 melhores Noir seguindo clichês e estereótipos baratos.
A premissa é como várias outras dessa lista. Começa um pouco como “Night in the City” e o andarilho tentando ganhar a vida com jogos de azar nas ruas, mas aqui isso lhe arranja um emprego gerenciando um grande cassino na cidade. Ele passa a ganhar bem e ter um padrão de vida muito mais alto junto com seu chefe; dia após dia resolvendo problemas e cuidando dos lucros entre drinks ao longo da noite. Então o patrão viaja e volta casado com Gilda, uma mulher que praticamente derruba o teto na cabeça do protagonista com sua mera presença. Dito isso, prefiro não elaborar tanto a respeito do que acontece mais adiante porque a experiência se beneficia muito da falta de informação. Qualquer pista que seja já tem o potencial de estragar a química intensa e misteriosa em jogo e talvez o filme todo. Basta acreditar que Hayworth é tratada como imperatriz do mundo e ocupa tal lugar como se tivesse sido feito por ela.
8. The Big Heat (Os Corruptos), 1953
Direção: Fritz Lang
Essa é uma obra que não tem muitos diferenciais além do fato de ser extremamente boa. Algo como o próprio Howard Hawks é descrito: um diretor que não inovou a forma como outros, mas era tão bom no que fazia que chamou a atenção. Um Noir feito pelo mesmo Fritz Lang que ajudou a construir o gênero com seus trabalhos expressionistas de anos antes, “The Big Heat” se apoia em conceitos mais comuns para contar sua história, usando o modelo da trama policial como ponto de partida. Dave Bannion é um policial com uma forte inclinação para fazer o que é certo, uma qualidade mal vista num departamento infestado pela corrupção.
Quando um policial comete suicídio e a investigação se mostra pouco eficiente, Bannion começa a investigar por conta, revelando uma pilha de sujeira que pode lhe trazer problemas. É simples o bastante, um policial bom contra o sistema podre, e muito mais ao mesmo tempo. Essa premissa poderia se encaixar facilmente na série “Dirty Harry”, talvez por ser bem feita a ponto de ter sido uma das influências, quando na verdade transcende sua premissa simples com um protagonista forte e uma visão peculiarmente pessimista de como esse atrito funciona. Em primeiro lugar porque Bannion não é a manifestação da moralidade ou da revolta, ele preza pela justiça usando sua virilidade como máscara e as mágoas causadas por um sistema podre como combustível. Em segundo lugar porque o inimigo não é exatamente um grande vilão, mas uma soma de pequenos egoísmos e viradas de cabeça convenientes. É uma missão simples o bastante com um plano de fundo rico por trás de cada elemento.
7. The Maltese Falcon (O Falcão Maltês), 1941
Direção: John Huston
Pode não ser o melhor da lista, mas é o filme em que todos pensam quando falam em Noir. Seja por ele ser ser apontado como o primeiro do gênero, por sua qualidade ou por concretizar tantos preceitos e definir décadas de outras produções. Em “The Maltese Falcon”, Humphrey Bogart estrela no primeiro de uma série de papéis marcantes no gênero, desta vez como o detetive particular Samuel Spade. Retirado diretamente de um livro de Dashiell Hammett, autor da literatura pulp, o filme acompanha Spade em um trabalho comum que tem resultados trágicos. Uma tarefa simples resulta em duas mortes com apenas uma mulher enigmática ligando os pontos ainda não revelados. Assassinato, uma mulher manipuladora, um objeto cobiçado por criminosos e um detetive durão para colocar todas as peças no lugar.
Contando com um roteiro sucinto e direto ao ponto como o próprio Sam Spade, um mistério caracterizado pela falta absoluta de informações logo ganha forma quando mais informações são adicionadas, mas sem tornar a situação mais clara. “The Maltese Falcon” mantém o espectador no escuro propositalmente e só informa algo quando realmente quer. No resto do tempo, basta apreciar como roteiro e protagonista caminham lado a lado: o personagem de Bogart segue sua investigação sem um jeito exatamente padronizado e organizado de agir. Para ele, as coisas simplesmente acontecem, algumas vezes rapidamente e outras um pouco mais devagar. Enquanto isso, ele se mantém preparado para o que der e vier, seja calejando seus punhos no rosto dos outros ou desconstruindo as mentiras ao seu redor. Um clássico, sem mais.
6. Out of the Past (Fuga do Passado), 1947
Direção: Jacques Tourneur
Posso estar me repetindo, porém este é o Noir que esculpe em mármore toda a mitologia do gênero em um filme só. Não no sentido de abordar todas as vertentes que foram surgindo ao longo dos anos, e sim pelo longa usar as características que “The Maltese Falcon” estabeleceu tão bem e torná-las ainda mais únicas. Então, sim, usam de novo todo aquele conjunto de elementos: um detetive particular, uma mulher manipuladora, um evento simples que vai longe demais e a presença eterna do crime. Além disso, este filme também não desaponta em sua trama complexa, seu protagonista forte interpretado por um grande ator e pelos diálogos icônicos. Antes foi Bogart quem impressionou, aqui é a vez de Robert Mitchum mostrar seu talento em um personagem menos determinado que um Samuel Spade e mais cínico, sem tanto interesse em resolver nada quanto tem de salvar sua própria pele.
Se fosse só isso, então estaria sendo repetitivo ao citar “Out of the Past” por ter as mesmas qualidades de “The Maltese Falcon“. O pessimismo total e absoluto, irônico e onipresente, é o grande diferencial em um Noir ambicioso o bastante para criar toda uma realidade baseada nos valores invertidos, um lugar onde fazer uma coisa boa é sair da norma vigente de ser imoral. O protagonista caminha nesta tênue linha entre o que ele fez a vida inteira, trabalhar para gente de caráter duvidoso, e o que ele realmente quer em sua vida nova, ser diferente. Difícil é correr atrás de seus objetivos quando tanta gente não concorda com eles.
5. Double Indemnity (Pacto de Sangue), 1944
Direção: Billy Wilder
A reputação de “Double Indemnity” não se construiu tanto por introduzir o gênero como novidade ou por seu diferencial dentro dele, mas por ser bom a ponto de ser um sucesso absoluto com o público e a crítica. Sua popularidade bombástica rendeu 7 indicações no Oscar sem nenhuma vitória e eventualmente popularizou o formato único do Noir no círculo comercial, fazendo alguns o considerarem como o primeiro grande do gênero. Por vários motivos, este é considerado um dos grandes até hoje com razão: direção, roteiro, elenco, fotografia e trilha sonora estão bons como nunca.
“Double Indemnity” se tornou “Pacto de Sangue” no Brasil quando sua tradução literal seria “dupla compensação” ou “dupla indenização”, uma possibilidade no ramo de seguros que paga o dobro do valor contratado. Não é muito comercial, concordo, ainda que faça completo sentido com a trama de uma esposa que quer matar seu marido pelo dinheiro e recruta a ajuda de um sagaz vendedor de seguros. Mais um para a fila de planos ambiciosos que vão para o ralo, não surpreendentemente. Por um lado há um grande plano, que para uns filmes seria história o bastante, uma mulher que seduz um homem pelo sexo e pela ambição; por outro há o roteiro de duas figuras importantíssimas para o gênero, Billy Wilder e Raymond Chandler, entregando alguns dos diálogos mais icônicos da história; e por fim, Fred MacMurray contracenando com Barbara Stanwyck numa concretização de todos os temas morais, sexuais e psicológicos que caracterizam o Noir e tornam este um dos melhores exemplos por aí.
4. Scarlet Street (Almas Perversas), 1945
Direção: Fritz Lang
Esse sim foi uma surpresa das grandes. A cada um ano ou dois, reviso ou expando minhas listas para incluir novos itens, o que normalmente exige que eu mude a ordem de antes conforme filmes melhores ocupam posições mais altas. No entanto, é raro e incrível quando acontece surge algo como “Scarlet Street” para ocupar um quarto lugar na lista. Acima de obras espetaculares como “Double Indemnity” e “The Maltese Falcon“, confortáveis em suas posições há um bom tempo. E nem fico tão triste quanto chocado quando algo assim acontece, é mais um choque positivo por encontrar um filme de encher os olhos e restaurar o amor pela arte que por vezes se perde em meio às obrigações da vida moderna. E que maravilha encontrar um filme tão incrível de ninguém menos que um dos responsáveis pela gênese do Noir? Não é a primeira vez que Fritz Lang aparece aqui, de fato, essa é a mais alta.
“Scarlet Street” é cínico e detestável, sujo e dissimulado como um Noir muitas vezes é. Ele se aproveita do melhor e do pior que a humanidade tem para oferecer, usando a inocência como contraponto para o sadismo e a falta de escrúpulos. Restaurando a fé de um ser humano apenas para ter a chance de levá-lo ainda mais para baixo do que ele estava antes. Isso é cruel, apenas. A obra não tem medo de ir onde dói mais e mostrar todos os passos da maldade praticada enquanto o protagonista permanece cego. Com Edward G. Robinson e Joan Bennett, “Scarlet Street” traz a magia da tragédia de ver como ter em mãos os ingredientes certos pode ser insuficiente para ser feliz. É a ironia usada para máximo efeito dramático.
3. The Big Sleep (À Beira do Abismo), 1946
Direção: Howard Hawks
Todo filme dessa lista que envolve um grande mistério não é nada perto de “The Big Sleep”. Esta obra de Howard Hawks é o avatar dos mistérios, histórias complexas e confusões na cabeça do espectador. Motivo de crítica para muitos críticos na época e até hoje, os nós na cabeça de quem assiste são atemporais. Felizmente, tudo faz sentido no final das contas, evitando que tanta complexidade seja algo ruim e tornando-a um motivo para aplauso. Francamente, não consigo lembrar nem de metade dos detalhes da trama e nem lendo o sumário dela pego totalmente a corrente de eventos, mas posso dizer com segurança que na hora de assistir tudo se encaixa. Além da história e seu incrível feito de complicar-se tanto sem virar um grande fracasso, outro ponto fortíssimo se encontra no protagonista de Humphrey Bogart.
Novamente num papel de detetive, ele consegue ser completamente diferente de seu equivalente em “The Maltese Falcon“; Phillip Marlowe não tem nenhuma similaridade com Samuel Spade exceto o ator e a profissão. Spade é quase a manifestação da inteligência e virilidade; Marlowe está muito mais para um ser humano, um protagonista com o qual a audiência pode se relacionar mais facilmente. Apesar de inteligente, ele é uma pessoa com seu próprio código moral, valores, necessidades e desejos, um dos poucos exemplos de protagonista moralmente bons que não fica mal localizado num gênero caracterizado pelo pessimismo. Aqui tanto ele como outros personagens são incrivelmente profundos para um gênero que criou tantos padrões atraentes e tão facilmente seguidos. O detetive não precisa ser apenas a chave para os segredos, a mulher não precisa ser manipuladora mal intencionada e o fatalismo não se encontra apenas na conclusão de tudo.
2. In a Lonely Place (No Silêncio da Noite), 1950
Direção: Nicholas Ray
Como um dos diretores mais sentimentalistas de todos os tempos se encaixaria num gênero impiedoso como o Noir? Eu não fazia idéia até pouco tempo e tinha até esquecido um pouco do estilo de Nicholas Ray. “In a Lonely Place” foi um lembrete e tanto. Primeiro por mostrar como o cinema de Ray é potente, independente da história; em segundo lugar por novamente mostrar que o Noir não segue regras rígidas para ser o que é. Em essência, o gênero aborda certas verdades da vida com o perigo de uma lâmina afiada e a sutileza de um assassino profissional. De seu jeito literário, o gênero fala de todas as vezes em que a vida é frustrante, quando ela mostra-se uma sequência de infelicidades com intervalos de satisfação — uma descrição certeira, diga-se de passagem. “In a Lonely Place” é a prova viva disso, transferindo em momentos simples o fatalismo e a ironia que contagiam a vida em todos os momentos.
Dix Steele é um roteirista de Hollywood que há tempos não produz nada, estando despreocupado com sua vida a ponto de não se esforçar para livrar sua cara quando uma garota que o visitou é assassinada. Então surge uma testemunha a seu favor e dá início a um destes intervalos de satisfação na vida de Steele. Parece simples o bastante e até parecido com “Mildred Pierce” no sentido de poder se encaixar no Drama se não fosse um detalhe: um assassinato. Aqui ele é o estopim para os problemas de Dix e Laurel, sua querida testemunha. Nicholas Ray usa o que sabe sobre o lado macio da psique humana para mostrar que dois personagens são o bastante para uma história boa. De um lado, Bogart numa outra interpretação original, diferente de Spade e Marlowe; de outro, Gloria Grahame como uma mulher dividida por impulsos diferentes, uma de sua cabeça e outra de seu coração. Obra-prima, sem mais.
1. Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses), 1950
Direção: Billy Wilder
Filmes baseados em fatos reais se tornaram um clichê tão grande que incontáveis obras anunciam esta característica nos créditos mesmo sem ter uma vírgula de realidade ali. Atualmente a moda continua forte, embora dê uma maquiada ao não explicitar esse detalhe nos créditos, deixando as várias histórias biográficas falarem por si. Não vou dizer que são filmes ruins, alguns são realmente muito bons, mas raramente algum usa a realidade para efeito tão forte como “Sunset Boulevard”, que aproveita a história do cinema — a parte mais sórdida, talvez — para construir sua excepcional história. Filmes como “The Artist” e “Singin’ in the Rain” usam a transição entre o cinema mudo e o “falante” para seus enredos — de uma forma muito mais alegre que um Noir, claro. “Sunset Boulevard” não celebra tanto o avanço tecnológico quando escolhe as novidades mais desagradáveis dessa nova tecnologia. Com o advento do som, carreiras foram arruinadas pelo cinema ter se transformado quase completamente; algumas atrizes não tinham voz para atuar, outras foram trocadas por sangue novo e cineastas perderam carreiras inteiras quando seus filmes já não funcionavam tão bem no novo formato.
A história aqui junta numa união profana um roteirista em maré de azar com uma atriz do cinema mudo esquecida pelo mundo. A escolhida para o papel? Gloria Swanson, uma atriz do cinema mudo esquecida pelo mundo. Ficção reflete realidade numa obra que expõe alguns dos podres de Hollywood sem nunca pensar em ser pretensiosa. Os fatos falam por si, um homem que busca sucesso o encontra de um jeito que não esperava e, eventualmente, questiona-se se era isso que queria mesmo. Posso estar errado, mas estou quase convicto de que o segredo por trás do sucesso de Swanson é interpretar uma personagem na mesma situação que a sua; é o detalhe que completa o roteiro entre roteiros da dupla Billy Wilder e Charles Brackett, que faz dela uma das personagens mais icônicas de todos os tempos. Curiosamente, a realidade refletiu a ficção de volta quando Swanson voltou ao esquecimento depois de um período de atenção por “Sunset Boulevard”, outra das ironias tão exploradas pelo Noir.
9 comments
Alguns filmes colocados não são do gênero noir.Alem do mais o autor omitiu algumas obras de arte sobretudo
os de Roberto Siodmak, Huston ,Dassin,Kubrick Robert Aldrich, Lang , entre outros
A proposito leia Film Noir de Alain Silver& James Ursini, Paul Duncan
Olá. Quais filmes não são do gênero? Algumas obras ficaram de fora porque não assisti todas do gênero, vou atualizando a lista conforme assisto novos filmes e reorganizo a ordem. Sobre o livro, ganhei de presente e ainda não li porque compraram a versão em espanhol sem querer (Cine Negro). Abs
Boa tarde Caio, muito bom esta lista, assisti a outros noir, vou ter muitas possibilidades para me emocionar com esse gênero muito bacana. O preto e branco é fantástico. E as mulheres….
Boa a lista. Considero “O que terá acontecido a Baby Jane” uma obra prima, faltou ele.
Excelente lista! Sabe onde é possível ver Scarlet Street do Fritz Lang? Procurer no streaming, sem sucesso e parece interessantíssimo.
Fala Luiz Cláudio! Cara, eu vi que tem no YouTube e no Daily Motion, mas acho que sem legenda. Talvez tenha no MUBI ou no Oldflix, vale a pena ver por lá também. Abraço!
A lista está ótima. Estou seguindo, falta ainda os 8 para eu fechar. A propósito, não é fácil achar alguns desse filmes da lista, não é?
(Alfredo Torres- Teresina-PI)
Bom dia, Alfredo! Pois é, alguns filmes são bem chatos de achar, só por torrent e alguns nem assim, só em tracker privado. Sobre os livros, eu só li alguns em inglês e poucos em português. Tem o “Film Noir” do Alain Silver que saiu pela Taschen, é um livro de fotografias com conteúdo também, mais introdutório. Descobri esse fazendo pesquisa, mas particularmente eu não li: https://www.versatilhv.com.br/produto/livro-filme-noir-dez-filmes-essenciais-da-colecao/5355486
Abraço!
Só uma questão: quais livros em português você indica para quem está estudando o gênero noir?