Talvez não devesse ser surpresa, mas “The Lady from Shanghai” foi mais um dos trabalhos de Orson Welles altamente editado, regravado e modificado pelo estúdio antes de seu lançamento. Ao contrário de “Touch of Evil“, vale dizer, o conteúdo cortado não foi encontrado nem as anotações do diretor a respeito de sua visão original. O que se tem é apenas a versão revisada pela Columbia Pictures e Harry Cohn, o produtor. A obra saiu com mais de um ano de atraso no mercado americano e foi inicialmente mau recebido. Mas há motivo para não gostar do que se vê aqui? Apesar de um pouco confuso por vezes, esta é outro trabalho digno de um dos maiores diretores de todos os tempos.
Michael O’Hara (Orson Welles) é um marinheiro sem muitas ambições além de fazer suas caminhadas noturnas e ter dinheiro o bastante para gastar em bebida e cigarro com os amigos. É uma vida simples e sem muita variedade, exceto pelas eventuais viagens a trabalho que o levam para portos em todos os continentes, lugares em que ele adquiriu a tal experiência de vida que o difere de vários outros marinheiros ignorantes. Mas a mesmice muda quando ele cruza o caminho de Elsa (Rita Hayworth) por acaso. Deste ponto em diante, Michael se encontra num emaranhado de mistério e perigo em que nunca esperava entrar.
O assunto facilmente rende conteúdo para preencher um livro inteiro. Não obstante, a carreira de Orson Welles é um exemplo um tanto peculiar entre tantas histórias diferentes que acabam compartilhando alguns elementos; tal como vários atores da Era de Ouro de Hollywood que começaram suas carreiras no Vaudeville ou atores britânicos com origens em companhias de teatro clássico. Welles, por outro lado, começou no topo com “Citizen Kane” e foi descendo de lá ao longo dos anos, como ele mesmo diz em “F for Fake“. “The Lady from Shanghai” teve inspirações fortes no estilo documental de filmagem, que seria traduzido em um filme quase totalmente gravado nos locais idealizados. Mas não, o produtor ficou insatisfeito com essa abordagem e exigiu regravações feitas em estúdio, onde iluminação, som e direção poderiam ser mais firmemente controlados. Isso depois que as cenas já tinham sido gravadas no México e na Califórnia, por exemplo. Eventualmente, um filme que tinha sido entregue antes do prazo e abaixo do orçamento foi atrasado e teve custos a mais do que os planejados. Quem levou a má fama de gastar mais do que deveria, é claro, foi Welles.
Mas de que tudo isso importa no final das contas? Novamente é possível notar parte dessa influência negativa nas partes mais esquistas de “The Lady from Shanghai”, se posso chamá-las assim. Em econômicos 87 minutos, a história conta o essencial para que o espectador consiga desvendar o mistério acerca de indivíduos imersos em segundas intenções e ambições invisíveis. É possível ver quem estava contra quem, qual era o plano e onde este deu errado; os ingredientes essenciais para que a experiência faça sentido e deixe o público satisfeito. Sendo justo, a história e suas viradas incríveis não deixam impressões fracas. Mesmo assim, é possível enxergar uma margem para crítica na narrativa, que com certeza não está absolutamente dentro do espectro da clareza e da objetividade. Não seria surpresa ver alguém que se perdeu na metade e sentiu que as soluções não se apresentam de forma totalmente natural. Tenho um forte palpite de que parte do conteúdo cortado e modificado melhoraria um pouco esse quesito.
Só não posso dizer que concordo com aqueles que classificam a trama como complexa e confusa, tratando-a como um dos problemas de “The Lady from Shanghai”. Por mais que não se gaste muito tempo com uma exposição calma dos fatos, ao menos sua execução compensa. Caso contrário, daria para dizer que o resultado atingido é como o de “The Postman Always Rings Twice“, que ttem suas similaridades e não consegue ser tão convincente quanto aqui. Aliás, esta é uma comparação interessante porque “The Lady from Shanghai” aborda temas parecidos no desenrolar de sua história e acerta melhor neles. Ambos começam com um homem completamente comum que se apaixona por uma mulher comprometida, passa a conviver perto dela e começa sua onda de problemas a partir daí, eventualmente esbarrando em toques de um drama de tribunal no caminho. A diferença está no modo como tudo isso é trabalhado, especialmente porque uma duração com 26 minutos a mais não faz diferença para o filme de Tay Garnett.
Nem de longe daria para dizer que o envolvimento entre Michael e Elsa existe apenas pelo fato de Orson Welles e Rita Hayworth estarem casados durante a produção deste filme, pois ainda em 1947 os dois fecharam seu divórcio. A principal diferença encontra-se principalmente na escrita das cenas entre os dois principais e na atuação de Welles e Hayworth. Enquanto o primeiro estabelece situações mais funcionais para um envolvimento intenso, o último faz as cenas entre uma esposa-troféu e um marinheiro vivido serem poderosas e transbordarem a paixão proibida tão necessária para o sucesso. “The Postman Always Rings Twice” introduz seu romance abruptamente em seus primeiros momentos e passa o resto do tempo tentando compensar isso, apenas indo moderadamente bem. “The Lady from Shanghai”, por sua vez, faz um trabalho significativamente superior ao também colocar o primeiro encontro nos primeiros minutos e depois trilhar um caminho bem mais longo até que a atração se manifeste de forma mais evidente.
Além de um planejamento adequado por parte do roteiro, que trata a interação como um processo ao invés de um fato, toda a relação funciona em grande parte pela atuação de Orson Welles como o personagem principal. Sim, seu curioso sotaque irlandês chama a atenção e gera um pouco de simpatia pelo rapaz por conta do charme sobre cada palavra, mas é sua personalidade que realmente faz tudo funcionar. Michael O’Hara é um homem teimoso e desconfiado. Nunca negou sua atração pela garota, como sua narração inicial faz questão de indicar, ao mesmo tempo que tenta não se envolver muito, ficar quieto em seu canto até que as circunstâncias forcem alguma atitude. Essa eterna resistência de atos nunca cometidos com absoluta certeza torna não só seu envolvimento inicial com Elsa mais suave como também abre possibilidades dentro da trama. Ser de poucas palavras não impede de que ele guarde as certas conforme cada situação.
Potencialmente, “The Lady from Shanghai” poderia ter sido tantas coisas inimagináveis que dificilmente serão conhecidas, pois o estúdio provavelmente destruiu as gravações não usadas. Alguns pontos denotam abertura para maior exploração, como cenas adicionais entre a sequência de eventos que levam o mistério para frente, mas não posso dizer que encontrei aqui a falta de alguma coisa. Ao menos em termos de história, soa mais certo qualificá-la como objetiva e enxuta ao contrário de simplista, rasa ou incompleta. Muito menos pode-se acusá-la de ir longe demais em sua ambição, como o outro Noir citado anteriormente. Este é mais um excelente filme de um dos mestres do Cinema, com o único elo fraco sendo Glenn Anders e uma atuação desnecessariamente forçada e desconexa com todo o resto. Seu personagem se encaixaria muito melhor num faroeste, que costuma ter indivíduos desequilibrados e meio pirados em seu elenco.