Parece que o gênero Noir não consegue ficar longe da controvérsia. Não bastando o assassinato, o sexo e corrupção humana afrontando a censura, “Rebecca” vai um pouco mais além. Além dos conflitos criativos, outro problema bateu na porta da produção: não uma, mas duas autoras alegaram plágio contra Daphne du Maurier, a autora do livro que foi base para o filme. Uma delas foi uma americana, que perdeu seu caso na justiça; e a outra uma brasileira, Carolina Nabuco, que supostamente negou uma proposta para que ela concordasse que as similaridades eram apenas coincidências. Plágios em sequência ou três pessoas iluminadas por uma grande idéia? Grande, de fato, pois ela resultou num dos melhores filmes de Alfred Hitchcock.
Numa viagem à paradisíaca Monte Carlo, uma jovem garota conhece Maxim de Winter (Laurence Olivier), magnata inglês bem conhecido. Maxim e a jovem começam a se conhecer melhor e logo se apaixonam, mas algo não está bem certo. Ele tem crises de irritação súbitas e frequentemente abandona a garota no meio dos encontros sem dar uma pista do motivo para essas atitudes. Ela descobre que a razão por trás daquele bizarro amor à primeira vista é Rebecca, a falecida esposa de Maxim, cuja sombra ainda paira sobre a vida dele.
“Rebecca” não parece ser muita coisa no começo. Não há muito que sugira um Noir, tirando a fotografia, ou um clássico suspense Hitchcockiano, apenas uma série de mal entendidos numa situação difícil de decifrar. Entra o elemento mais importante da história: o MacGuffin que não é bem um MacGuffin. Dizem que para ser um MacGuffin o objeto deve conduzir a história, mas não ter uma real importância. Quem foi Rebecca? Ela deve ser muito marcante para dar nome ao filme fazendo tão pouco. Seria ela o MacGuffin? Talvez no início, mas não por muito tempo. Embora sua relevância comece questionável, não demora muito para provarem a genialidade do roteiro ao extrair tanto material de um personagem que sequer aparece no filme. O culto de sua pessoa desconhecida alimenta a história sem mostrar nada concreto. Melhor ainda: faz deste filme uma grande história de mistério, explica toda aquela esquisitice do começo e justifica o termo Noir em suas reviravoltas.
Alfred Hitchcock se aventura num gênero diferente daquele que fez sua fama. Em nenhum lugar encontra-se um assassinato, um inocente sendo incriminado ou uma rainha da beleza no papel principal. E curiosamente, nada disso é problema aqui. Pelo contrário, posso dizer com segurança que boa parte do sucesso é devido ao modo como o mistério é conduzido. A grande questão não se prende a trivialidades como a aparência de Rebecca e detalhes frívolos sobre sua vida, o mito supera a realidade nessa história. Independentemente de quem ela foi e do que ela fez, sua imagem aterroriza aquela casa de uma forma quase irracional. Principalmente a protagonista, que não sabe como se portar numa casa que se adequou aos gostos de outra mulher. Existem quartos dedicados a ela, as pessoas evitam falar seu nome, objetos possuem suas iniciais e a governanta, em especial, nutre um tipo de carinho incondicional por sua ex-patroa — mais que o próprio Maxim. O foco de verdade é ver como a nova esposa do aristocrata se vira numa casa onde é comparada constantemente com sua predecessora. Só que para se dar bem esse mito precisa ser desconstruído antes que os nervos se desfaçam de estresse.
No início confuso e cheio de questões, alguém pode muito bem julgar precocemente a protagonista de Joan Fontaine. Sua postura passiva e a insistência em tentar agradar o marido podem soar machistas, um indicador de uma personagem fraca e sem presença. Não poderia haver mais inverdades numa afirmação dessa. Fontaine interpreta uma moça verdadeiramente ingênua, sem ninguém no mundo para chamar de família até que encontra Maxim, uma pessoa que chama sua atenção; talvez não pelos motivos clássicos — como charme e palavras polidas — e sim pela personalidade enigmática dele. Se o mistério for atraente para a protagonista, então há um motivo para romance, senão deve-se acreditar que alguma força maior fez ela se apaixonar.
De qualquer forma, a atriz ganha presença quando a postura esquisita de seu marido — interpretado muito bem por Laurence Olivier — ganha fundamento com a figura mitológica de Rebecca. A moça ganha uma qualidade mais digna que submissa, no mínimo. Colocar os pés dentro da mansão de seu marido é encarar um gigante invisível e onipresente. Ela luta para tentar provar que o amor é o bastante para vencer a nostalgia, porém às vezes o preço de um romance é alto demais. Ela é uma garota simples, de origens humildes e bons modos. Já é complicado trocar de vida na passagem de um instante — de criada de uma socialite a senhora de sua própria mansão — ocupar o lugar de alguém com uma reputação gigante, então, é ainda pior. Um homem tem a cabeça cheia de problemas e uma esposa que não entende 10% deles, mas gostaria muito. É uma simples questão de querer ser amado e achar seu lugar no mundo.
Se “Rebecca” tem algo a dizer, é que Alfred Hitchcock não é Mestre só do Suspense, mas também do Noir. Seu primeiro projeto em Hollywood com o produtor David O. Selznick mostra-se como um dos melhores filmes do diretor, não ficando muito atrás de alguns clássicos lançados anos depois. A surpresa é ver que o suspense não faz falta, ao menos não quando um mistério sublime como esse está em seu lugar.