“The Public Enemy” conta a história de Tom Powers (James Cagney), nascido, crescido e criado nas ruas de Chicago. Toda sua vida se passou buscando alguma coisa para fazer fora de casa, seja arranjar uma brincadeira nova ou algum jeitinho de ganhar uns trocados a mais. Isso eventualmente evolui e, junto de seu amigo de infância, Tom transforma as malandragens eventuais em pequenos crimes até que faz carreira em cima disso quando a Era da Proibição inicia nos Estados Unidos. A criminalização do álcool não mata o desejo das pessoas e há gente mais do que disposta a satisfazer as vontades de seus clientes. O problema é que nesse mercado a concorrência pouco amigável torna tudo mais perigoso para os envolvidos.
“The Public Enemy” é como “Escape from Alcatraz“: não tem absolutamente nada a ver, mas também ficou tanto tempo na lista para assistir que já mal sei dizer quantos anos exatamente. É um caso especial porque está há pelo menos 10 anos nessa lista e entrou quando vi um quadro de meu pai com dois cartões postais antiguíssimos emoldurados, um de “Casablanca” e outro de “The Public Enemy”. Era apenas uma vontade fraca de início, que aumentou quando descobri que se tratava de um dos filmes clássicos de gângster mais respeitados de sua época, junto de “Little Caesar” e “Scarface“.
Curiosamente, existem alguns paralelos fortes, não apenas temáticos mas também específicos entre “The Public Enemy” e este último, que sairia no ano seguinte em 1932. Apontar similaridades entre filmes de um mesmo subgênero e de lançamentos tão próximos como se fosse grande coisa seria besteira, o mesmo que comparar faroestes ou filmes de super-herói de um mesmo período. Neste caso, era comum que os protagonistas fossem anti-heróis ou vilões mesmo, contanto que eles pagassem por seus crimes no final das contas. A diferença aqui é a similaridade notável em algumas cenas específicas, muito similares ao que se encontra em ambas as versões de “Scarface“. Difícil não lembrar da cena de Tony confrontando Johnny Lovo ou se envolvendo em atrito com a família por conta da origem de seu dinheiro. Mas, claro, nada disso significa plágio de um dos lados ou algo do tipo, a comparação serve para, além de curiosidade, evidenciar qual versão executa melhor conceitos similares.
Depois de tanto tempo, é triste dizer que o resultado encontrado não é dos mais satisfatórios. Por um lado, é bom que as obrigações morais sejam cumpridas de um jeito menos invasivo, ainda que não menos expositivo, que em “Scarface“. Por exemplo, não bastando o enredo por si, há um prólogo e um epílogo em texto explicitando que os personagens representados não devem servir de modelo, e sim como um problema social a ser combatido. A diferença é que não passa muito além disso, ao contrário da obra de Howard Hawks e a filmagem de novas cenas por Richard Rosson a serem incluídas no filme em si. Isso já é algo a se considerar e talvez até faria de “The Public Enemy” aquilo que a outra obra poderia ter sido, mas de nada adianta acertar nisso enquanto o corpo do enredo falha em vários pontos básicos.
A história começa com um Tom Powers jovem nas ruas de Chicago demonstrando desde cedo o caráter que viria a se intensificar com os anos. Pode-se recordar de “Once Upon a Time in America” e a infância de todos os personagens mostrada antes dos anos adultos, talvez. “The Public Enemy” trabalha isso em breves momentos, que, efetivamente, não somam para muita coisa além de dizer que a tendência ao crime vem desde cedo. Mas o que a cena afirma mesmo? A semente do crime é algo natural e irrefreável, que não pode ser remediado a despeito dos esforços externos? A resposta fica no ar. Objetivamente, a obra não a fornece; é a superficialidade da abordagem que sugere esta conclusão simplista a respeito da natureza do caráter do protagonista.
No geral, o roteiro sofre deste problema. A história de Tom Powers segue certas convenções, as mesmas que provavelmente são identificáveis na maior parte do subgênero, sem construir em cima do modelo e fazer da história algo memorável. É tudo muito simples, muito rápido. A duração de 83 minutos poderia tranqüilamente ser estendida sem correr o risco de passar dos limites. É sempre válido alongar uma duração em função de mais conteúdo relevante. Isso ao menos amenizaria o desenvolvimento superficial de alguns elementos, mas infelizmente não salvaria “The Public Enemy” da má escrita de várias outras cenas. Uma traição impactante só é considerada como tal porque os personagens assim a consideram, ao passo que a representação concreta dos eventos, a cena em si, revela algo vago e não tão intenso como sugerido. Isso sem contar outros momentos perfeitamente descritos como decepcionantes. O clímax, por exemplo, comete o mais grave dos crimes de omitir completamente toda a ação e ainda encerrar a seqüência com a fala mais expositiva em que poderia se pensar.
O único resultado interessante desse jogo de omissão está em duas outras cenas que também não mostram os eventos diretamente e, em contrapartida, colocam a sugestão a seu favor de um jeito que definitivamente não seria possível se o Código Hays estivesse em vigência. Além disso, uma boa parcela das interpretações também deixa a desejar. Poucas são ruins mesmo, várias são apenas medianas e há ainda menos das boas, talvez apenas James Cagney, Jean Harlow e Mae Clarke — esta última protagonizando uma das mais simples e melhores cenas do filme. “The Public Enemy” definitivamente tinha potencial para ser mais do que foi. Os ingredientes de uma boa receita estão todos ali, mas de forma errada: ou são de má qualidade, ou em quantidade insuficiente.