O que há para ser dito sobre “Casablanca” que não foi falado antes? A coisa mais diferente que poderia soltar é que odeio o filme, mas isso seria apenas uma grande mentira para chamar a atenção e esse não é o propósito do site. Bem conhecido até por aqueles que não se ligam muito nos clássicos, esta obra de Michael Curtiz foi uma grande surpresa; não se tornando apenas um sucesso comercial e de crítica, mas também um marco no cinema. Hoje ela é um sinônimo de qualidade, naquela época não era bem assim. É curioso como alguém poderia falar em “Casablanca” sem pensar em grandeza, mas nem Curtiz, nem a Warner Bros. esperavam tanto aplauso.
Os alemães do Terceiro Reich seguem dominando a Europa, colocando vários países no chão e até chegando a dominar a amada Paris. Entre soldados e tanques, diversas pessoas fogem de uma briga que eles não compraram, encontrando um complicado trajeto pela frente. Para chegar à segurança dos Estados Unidos, estes devem passar por Europa, Mediterrâneo, África e por uma curiosa cidade em especial: Casablanca. Um dos grandes destaques de lá é o charmoso café de Rick Blaine (Humphrey Bogart), por onde figuras de todos os naipes passam para aproveitar um pouco de conforto em tempos caóticos. Muitos passam sem deixar qualquer tipo de saudade, mas Ilsa Lund (Ingrid Bergman), uma figura do passado de Rick, promete mudar isso.
Existe um famoso ditado em inglês que diz: “Jack of all trades, master of none”. Em português seria algo como “Faz de tudo um pouco, mas nada direito”, porém nenhum se aplica totalmente a “Casablanca”, apenas a primeira parte. Este clássico pode muito bem ser descrito como um jack of all trades, ou melhor dizendo, um pau para toda obra; maneiras mais romantizadas de dizer que este é um daqueles filmes que tem um pouco de tudo em sua receita de sucesso. Um filme completo, que não se limita a um gênero ou limita seu público, agradando em praticamente tudo o que faz. Milhões o consideram um grande trabalho, para mim não é nada menos que um dos melhores de todos os tempos.
Rick é um cara durão, senhor de sua casa. Ele faz questão de exclamar seu descaso ao falar que não se arrisca por ninguém e, assim, numa corrente de descaso só precisa se preocupar com si mesmo. Enquanto é uma pose imponente, esse misterioso charme não deixa de levantar certas perguntas sobre ele. Quem é ele de verdade? Como ele chegou ali? O que fez ele se afastar tanto de sua humanidade? Este texto poderia muito bem responder essas perguntas com algumas frases e, por mais que as palavras sejam escolhidas a dedo, elas ainda seriam uma forma rasa de satisfazer curiosidades. A vida de uma pessoa nunca se define por respostas objetivas, é sempre um conjunto de fatores que a leva de um lugar a outro. Bebendo dessa fonte, “Casablanca” não justifica a amargura de Rick com um simples desencanto amoroso. Embora este evento tenha sua parcela de culpa, ainda restam outras questões sem resposta que tornam as perguntas que fiz mais difíceis de serem respondidas; e mesmo o tal desencanto não vem de forma repentina, o roteiro cuida para que cada informação seja transmitida sutilmente e de forma sempre variada.
Depois da quarta ou quinta vez que vejo “Casablanca” fica mais fácil enxergar o porquê dele ser tão bom. Numa primeira, entretanto, não é bem assim. O espectador assiste a tudo aquilo e muito provavelmente vai gostar do que viu, porém apontar exatamente qual é o ingrediente mágico ali, o elemento que executam tão bem, é outra história. Isso acontece porque não são efeitos especiais ou uma direção exímia que colocam esta obra num pedestal, compensando outros elementos menos chamativos; o conjunto da obra reúne a singularidade de um grande amor e a tensão de uma pequena guerra fria numa cidade, o entretenimento de um número musical e as palavras incisivas entre doses de conhaque. Esta não é uma história de um casal separado pelas ironias do destino, é um recorte da realidade que não poupa obstáculos em nenhum momento. A proposta é mostrar como a complexidade de reencontrar alguém importante pode tomar proporções tão grandes. É uma trama de tensão política, de amores perdidos, de motivações diversas e algumas bem ocultas.
“Casablanca” promete muito ao colocar duas, três e até cinco sub-tramas em paralelo à principal e, como o grande filme que é, usa cada uma delas para um fim satisfatório. Mais do que se preocupar com uma situação de conflito entre alemães e franceses, o espectador quer saber o que acontece com cada um daqueles personagens. Rick é galante, mas é só depois do fim da história que deixamos de vê-lo como um arrogante de terno e gravata. O mesmo vale para Louis Renault (Claude Rains), um corrupto e inescrupuloso oficial francês que começa como um sujeitinho desprezível. O que cria a conexão entre estes indivíduos e quem assiste? O roteiro com certeza tem sua parte nisso, aprofundando cada um de forma que suas ações — e consequentemente eles próprios — não sejam previsíveis. Outro elemento é o elenco de grandes atores e o último, mas não menos importante, é o modo como Michael Curtiz amarra tudo isso. O filme contém vários temas rolando ao mesmo tempo ao passo que seus personagens possuem personalidade. Simplicidade é insuficiente para representar tanta coisa. “Eu te amo” não está nem perto de descrever um romance que vai além de continentes, assim como usar a guerra para justificar tensões políticas é apenas o começo da conversa. Por que não usar canções para reforçar o sentimento de patriotismo? Ou quem sabe colocar um carismático pianista para tocar a música que um casal ouvia no passado? Para aprofundar um pouco os momentos mais banais, dar palavras afiadas a personagens que nunca dizem tudo o que podem, mas sempre mais do que o óbvio sugere. E finalmente, quando os bastidores estiverem preparados, colocar Humphrey Bogart para representar essa amálgama de sentimentos reprimidos e convicções supostamente rígidas.
É muito fácil jogar tanta coisa dentro da panela sem saber o que vai sair, difícil é fazer tanta diversidade se comunicar entre si para um resultado coeso. Conectando elementos semanticamente num mesmo filme já não é muito simples — como atuação, direção, editção e roteiro — fazer isso ao mesmo tempo que transcende gêneros cinematográficos, então, nem se comenta. Os visuais e certo cinismo sugere um Noir, o núcleo do casal já vai para o Romance, a trama política fala muito sobre temas de Guerra e a presença relevante da música puxa, inesperadamente, para um Musical. Com tanta coisa dando certo, não é por sorte que “Casablanca” se tornou um gigante entre homens.