Este é um Noir dos grandes. Se popularidade fosse proporcional a qualidade, esta obra certamente seria mais conhecida que uma porção de outros filmes que têm destaque hoje. Infelizmente, não é bem assim que as coisas acontecem.Sendo assim, este filme pode ser deixado de lado por não ser tão comentado por aí, embora mereça todo e qualquer comentário positivo. É uma pena, pois “Out of the Past” tem todos os ingredientes na medida certa para uma experiência fenomenal: personagens fortes, atuações espetaculares, uma história de crime e alguns dos melhores diálogos de todo o gênero.
Jeff Bailey (Robert Mitchum) é o dono de um posto de gasolina numa pacata cidade de interior, mas seu passado volta para o atormentar. Bailey não foi sempre um humilde empreendedor, anos antes ele era um renomado detetive particular em Nova York. Seu último trabalho envolveu localizar uma mulher que atirou em Whit Sterling (Kirk Douglas) e roubou U$40.000 seus. No entanto, este trabalho deu errado e o detetive abandonou seu trabalho por uma vida tranquila. No presente, Whit descobre o buraco onde Jeff se esconde e propõe um reencontro aparentemente amigável, mas que não cheira bem ao protagonista.
Aqueles familiares com o gênero Noir conhecem bem suas características: personagens moralmente falhos, sociedade distorcida, incompetência da lei, figuras femininas fortes e pessimismo acima de tudo. Personagens de índole duvidosa estão por toda a parte — como em “Scarface” e “Nightcrawler“; assim como sociedades distópicas e mulheres fortes também não são nenhuma raridade. O pessimismo, por outro lado, nunca esteve tão forte aqui. É uma experiência que não impressiona apenas por sua competência, no geral, sua visão de mundo é tão obscura que faz o espectador ter raiva de fazer parte da raça humana. Um belo murro na barriga de quem assiste.
O pior de tudo é que, de certa forma, muito do que é mostrado aqui é verdade. Nada é forte a ponto de criar uma realidade fantasiosa, como “Sin City”, e justamente por isso fica tão fácil se identificar com o que é mostrado. Difícil é aceitar tudo isso. Tenho certeza que até os mais otimistas se sentirão afetados pela agressividade da visão de “Out of the Past”. interessante, ainda, é o longa não se propor a ser ser uma experiência desagradável. Claro, uma alfinetada aqui e ali fazem parte do pacote, mas de alguma forma o diretor Jacques Tourneur torna todo o lixo da sociedade em arte. O que há de interessante num assassinato a sangue frio? Para alguns filmes, como qualquer “Sexta-Feira 13”, pouco mais que sangue escorrendo; aqui o ato sempre possui um precedente, um detalhe que faz dele reflexo dos ideais bizarros do Noir. Valores são invertidos: as pessoas são punidas quando tentam ser decentes e recompensadas quando são más. O sistema quebrou e todos aceitam aquilo, é mais aceitável contratar um detetive particular ou sujar as próprias mãos do que recorrer à polícia. Todo o plano de fundo é bem construído e desenvolvido, tornando possível que o Noir brilhe tanto quanto pode.
Não só elementos de gênero são favorecidos pelo roteiro. praticamente tudo se beneficia dessa qualidade. Embora possa dizer que toda a parte do cinema mais convencional se sustente por si. Robert Mitchum está simplesmente magnífico em seu papel, interpretando um personagem de puro carisma; um cara comum que aprendeu a usar a cabeça e se virar no mundo cão, jogando com as cartas que lhe foram dadas. Em seus tempos de detetive, ele parecia contente com isso, mas sua humanidade desperta em certo ponto e ele tenta mudar seu estilo de vida. Ao interpretar bem os dois lados da personalidade de seu personagem, Mitchum mostra que seu talento dramático não se limita a ler falas com sua voz icônica e fumar dezenas de cigarros. Pelo contrário, não seria exagero dizer que seu personagem tornou-se referência para o gênero depois do lançamento desta obra. Melhor do que um protagonista forte é ter coadjuvantes à altura. Jane Greer, por exemplo, pode muito bem ser definida como a expansão da femme fatale em “The Maltese Falcon“. Tudo o que falei de valores invertidos e do lado negro do ser humano pode ser encontrado nela. De um lado, Jeff Bailey usa métodos duvidosos para fazer o bem; em contrapartida, a personagem de Greer usa de sua luxúria para atos duvidosos. É uma dualidade impressionante pela relação entre eles ser tão contrastante — além do fato de ambos os atores darem um show nos papéis. Combine tudo isso com algumas das falas mais ríspidas e afiadas de todos os tempos e o resultado é uma experiência que não perdoa a desatenção do espectador. Qualquer segundo perdido pode ser fatal para a compreensão da história, ainda mais quando ela brilha tanto nos detalhes.
Mais do que um bom filme por si, “Out of the Past” é o exemplo mais sólido do Noir. As peças do quebra-cabeça estão todas ali e o que montam no final é absolutamente recompensador. Muitos filmes do gênero reproduzem os aspectos vistos aqui, como o pessimismo geral da trama, mas poucos estão no mesmo nível de sofisticação.