Muitos Noir se apoiam na figura de uma Femme Fatale para incrementar o que seria apenas uma história banal sem ela. Walter Neff, de “Double Indemnity“, certamente não teria os problemas que teve se não tivesse cruzado o caminho de Phyllis Dietrichson. Sua ruína vem na forma de um tornozelo delicado e uma ambição mortal. “Laura”, assim como “Rebecca“, faz parte dos filmes que elevam a figura da mulher fatal a um nível quase sobrenatural. Trata-se de uma história em que são como lendas ou assombrações, interferem na vida dos personagens sem estarem presentes. Aliado a uma sutileza na abordagem de temas controversos para a época, este filme de Otto Preminger não desaponta em satisfazer as expectativas que cria.
Seu próprio apartamento foi onde Laura (Gene Tierney) deixou de viver. Uma visita deixou dois tiros de espingarda na mulher e mais nada, com a identidade do assassino permanecendo um mistério. O caso fica a cargo do Detetive Mark McPherson (Dana Andrews), que investiga o caso com uma astúcia incomum. Não dá para saber se sua motivação é estritamente profissional ou pessoal, pois, aos poucos, ele mostra curiosidade e afeição pela afrodisíaca figura de Laura. Entre outros homens igualmente enfeitiçados pela moça, McPherson descobre se trata de muito mais que um assassinato comum.
Quando se fala em femme fatale hoje, uma certa imagem se cria: sensual, manipuladora, mal intencionada, cigarro na boca, conhaque ao alcance e os homens na mão. São descrições gerais para um modelo de personagem complexo e com resultados frequentemente fascinantes. No entanto, pode ser a receita para uma caracterização clichê e vazia, como é visto na protagonista do recente “Atômica“. Fumar e beber o tempo todo não faz um personagem bom, há muito mais por trás de alguém marcante como Laura. Começa pelo fato da moça nem estar viva no começo da história. Como alguém consegue ter presença de cena sem sequer estar nela? É um clássico exemplo do poder dos rumores, em suma. Embora a mulher seja vista brevemente de modo indireto, ela está bem viva nas palavras dos homens com quem se envolveu. Para eles, foi algo inesquecível, contagiante e ímpar. Qualquer mulher incrível que possa vir a aparecer depois entra numa categoria nova, já que Laura é incomparável.
A diferença entre “Laura” e “Rebecca” surge pela oportunidade de ver a tal mulher em ação. As histórias contadas não ficam somente na prosa, são representadas por meio de flashbacks acompanhados da narração de Waldo Lydecker (Clifton Webb), um dos amantes de Laura. Seus primeiros encontros com a garota dão o primeiro gosto de como ela era realmente, dizem se as descrições são exageros de um apaixonado ou verdadeiras. Daria para achar com certa segurança que seria o primeiro caso, já que dificilmente a deusa de um é vista dessa forma por outros. No entanto, este filme consegue concretizar o segundo caso de alguma forma. É difícil dizer exatamente como. A responsável é, claramente, a própria Gene Tierney, porém não tenho um elemento ou aspecto sólido de sua interpretação para justificar seu sucesso. Isso porque sua performance se baseia no conceito de ser ao invés de interpretar. Não diria que Tierney simula bem as características de uma femme fatale, elas fazem parte de uma personalidade que, acima de cigarros e bebidas, é naturalmente atraente.
Embora “Laura” conte uma história com algumas viradas impressionantes, este não é seu maior acerto. Minha satisfação surgiu pela oportunidade de ver ficção em atividade. Entusiastas de livros costumam dizer que uma parte grande da experiência de ler é imaginar mentalmente os eventos descritos em palavras. As rugas grosseiras, causadas pelo ar salgado do oceano, em um marinheiro obcecado por caçar uma baleia; olhos constantemente semi-cerrados, como se estivessem buscando alguma pista do seu objetivo. Por mais que uma adaptação cinematográfica às vezes não reflita a imagem mental do indivíduo, não deixa de ser impressionante ver prosa se tornar filme ou seriado. Aqui, fala-se muito da grandiosidade da mulher, então surge a oportunidade de conferir se ela é tudo o que dizem. Tierney transmite uma personalidade convencida a um triz da arrogância, o que seria fatal e pretensioso para uma personagem que se constrói a partir de sua fama. Ela está numa faixa em que esta segurança é admirável e até sensual. Melhor ainda, não me encontrei sozinho em meu encanto por Laura. Eventualmente, todos mostram certo fascínio por ela. Desde o poeta das frases teatrais e pose de aristocrata intelectual, belamente interpretado por Clifton Webb, até a invejosa solteira em decadência de Judith Anderson. Por si, a personagem-título já justifica todas as qualidades atribuídas a ela. O fato do resto do elenco mostrar-se impactado diversamente à moça solidifica este sucesso.
Não vou dizer que o roteiro não tem sua cota de reviravoltas interessantes. Trata-se de uma investigação de assassinato em um Noir, então é de se esperar que as suspeitas sejam transferidas de tempos os tempos, que o assassino seja revelado numa virada súbita e uma tragédia inesperada venha no final. Por um lado, estas características se encontram aqui e dão a”Laura” várias de suas surpresas, as quais não serão mencionadas por motivos óbvios. Há pelo menos uma grande revelação embasbacante para os dificilmente impressionáveis, além de algumas outras menores que surgem conforme os personagens revelam quem são. Em contrapartida, a parte do Detetive McPherson fazendo seu trabalho não se sai tão bem. Ela traz resultados concretos — senão a história inteira ficaria sem conclusão — mas peca no processo até eles. Não parece que seus métodos são premeditados, planejados de antemão por um profissional. Exceto pela investigação das pessoas próximas à vítima, o que envolve conhecer e questionar cada um, todo o resto parece muito vago. Ao menos não tive a impressão de que havia um Detetive manipulando pessoas para extrair informações e que essas informações estavam indo para algum lugar. No fim das contas, os resultados são completamente acidentais, como se aparecessem com a função de concluir aquele baile de informações retidas, dissimulações e intenções reprimidas.
“Laura” pode não estar próximo das grandes jóias do gênero, mas ainda é um excelente filme. Tem falhas, com certeza. A mesma investigação de assassinato que dá o pontapé inicial da trama é deixado um pouco de lado para voltar a surgir no final, sem muita força. Ao menos o aspecto que ganha destaque com essa omissão é exímio em sua proposta: criar uma lenda e a representar em toda sua grandiosidade. Graças a Gene Tierney e Clifton Webb, principalmente, a figura mítica de Laura é trazida a vida. De um lado, um homem versado e fluente com as palavras faz a gênese de uma mulher inesquecível; de outro, uma atriz que ostenta toda essa destreza de palavras em sua pessoa. Mais uma grande mulher para o hall de fama do Noir.