Os papos sobre “Strangers on a Train” frequentemente ficam em torno de duas coisas: ele ser considerado um dos melhores filmes de Alfred Hitchcock; e a famosa introdução sublimemente dirigida. Na verdade, não é só a introdução, a obra inteira é cheia de cenas e técnicas icônicas. Todas fazendo sua parte de exibir a criatividade do cineasta para além de sua capacidade de deixar a audiência inquieta. Essa direção sólida é, por sua vez, apoiada por um elenco que concretiza a ambição do roteiro, desenvolvendo a premissa simples em uma trama que vai longe demais, rápido demais. Tudo no bom sentido, claro. Afinal, criar problemas subitamente para um inocente desavisado sempre foi recorrente nos filmes do Mestre do Suspense.
Guy Haines (Farley Granger) é um famoso jogador de tênis, que, por acaso, conhece Bruno Anthony (Robert Walker) numa viagem de trem. Não dá para dizer que os dois se conectam imediatamente, mas Bruno não deixa isso se tornar um impeditivo para uma conversa entre eles. Através da inconveniência e da insistência, ele a Guy passam a viagem toda falando sobre fofocas, idéias e… assassinato. Bruno compartilha uma idéia que teve: dois estranhos trocar assassinatos, cada um mata a pessoa que o outro odeia e evita qualquer acusação de motivo no processo. Guy não dá muita atenção para isso, mas se surpreende quando vê que seu companheiro de viagem pode estar falando sério.
Quando disse que “Strangers on a Train” tem cenas icônicas de sobra, quis dizer que este é um dos filmes em que Hitchcock evidentemente experimenta técnicas cinematográficas novas: usar o reflexo de um par de óculos para estilizar um assassinato, ambientar o clímax num carrossel e usar uma miniatura para a grande conclusão… São pequenos toques que não perdem seu charme ao longo dos anos. A criatividade envolvida traz mais do que um aspecto experimental à obra, pois esta é uma experiência que funciona, diferente de muitos outros casos em que tentam algo novo sem chegar a lugar algum. No máximo, estes últimos estabelecem um exemplo do que não funciona ou dá um desafio aos que acham que conseguem fazer melhor.
A cena introdutória de “Strangers on a Train” estabelece um argumento forte sobre a sublime direção de Alfred Hitchcock. Um táxi encosta ao lado do meio fio e um par de oxfords pretos e brancos sai pela porta de trás, acompanhado por outro par de pés de alguém que leva as bagagens. Novamente, um táxi encosta e um par de pés desce, dessa vez mais modestos. Um caminha da esquerda para a direita, o outro da direita para a esquerda. Ambos entram numa estação de trem. Uma tomada de trilhos surge. Logo, eles estão dentro do vagão. Os dois se sentam e pés esbarram debaixo da mesa. “Você não é Guy Haines?”
Genial define bem esta sequência. Objetiva e simples também, além de eficiente. São apenas imagens e música sem diálogo e sem texto — não é como se nada disso fosse necessário. A mensagem é passada, o conflito é estabelecido e o espectador é introduzido à história. Focar num par de pés destaca sua função no corpo humano: locomoção. A câmera evidencia a idéia de movimento, o destino daqueles personagens e, além disso, diferencia os dois. Um oxford chamativo e bem polido contra um oxford comum. O jeito confiante e preciso de caminhar contra outro comum e sem nenhuma perfumaria. A direção para onde caminham mostra que, em algum momento, eles cruzarão caminhos. A estação aparece e, finalmente, os dois se encontram dentro do vagão. Esta introdução poderia ser feita de forma simples, com um dos envolvidos já estando dentro do trem e só mostrando o outro chegando, mas é executada elegantemente. A direção estiliza o conceito simples de um encontro entre duas pessoas e incrementa o suspense enquanto alavanca a trama. Por si, já é a metáfora definitiva para a direção espetacular de Hitchcock, embora não deva ser considerada como o único acerto de “Strangers on a Train” porque este sucesso é visto outras vezes.
Outro exemplo de narrativa visual eficiente é o próprio clímax. Neste caso há uma diferença: toda sua eficiência é resultado de um processo gradual de construção de suspense. Isso se deve mais ao roteiro que qualquer outra coisa. Combinar a tensão inerente de uma partida de tênis com outros arcos narrativos, por exemplo, é um dos elementos que tornam complexa a sequência de eventos e reflete outro ótimo Noir de um ano antes: “Night and the City” e a luta de wrestling. “Strangers on a Train” engrena rápido. Apoiado pela estupenda cena inicial, o enredo também não desaponta em mostrar seu alcance mais além. Tão logo que Guy encontra Bruno no trem, as coisas já começam a dar sinais de que darão errado. Quando finalmente dão e o conflito se instala, não há motivo para frustração. O conflito que começa com Bruno Anthony invadindo a zona de conforto de Guy Haines se escala subitamente e, sem demora, vai longe demais.
Mas não digo isso no sentido de que é exagerada ou absurda negativamente. De fato, as complicações surgem num piscar de olhos, só sendo encaradas como algo positivo porque Robert Walker está tão bem como um psicopata elegante. E dizendo dessa forma até parece que ele encarna o clichê do sociopata inteligente, charmoso e impiedoso. Ele é um pouco de tudo isso inserido num formato mais real: sua eficiência é determinada principalmente pela inteligência de suas vítimas. Guy saca desde o começo que há algo de errado com ele, outras pessoas não percebem porque não ligam ou porque são burras demais para perceber sua falsidade. Apesar desse diferencial de percepção, o papel do protagonista de Farley Granger é claramente menos chamativo. Walker impressiona mais, trabalha sob estes termos realistas e dá o seu melhor dentro dos limites de seu personagem. Inteligente sem ser nenhum Hannibal Lecter, mas tão capcioso e determinado quanto Harry Powell.
“Strangers of a Train” não me pareceu tão claramente um Noir quanto outros exemplos do gênero. Até mesmo “Rebecca“, um suspense psicológico em sua essência, casa mais claramente elementos do gênero, embora também tenha sido colocado em dúvida se é um Noir. É analisando o subtexto da obra — o qual inclui fortes contrastes morais e visuais, além de um contexto político — que se extrai um paralelo mais claro entre este filme e o gênero. De resto, existem mais elementos que a colocam num molde tipicamente Hitchcockiano de história. É uma experiência muito boa, de qualquer forma.