Por algum motivo que me foge, até hoje sempre deixava para ver um filme de Lars von Trier para a próxima. Não foi nenhum tipo de rixa contra o diretor, afinal não há como julgar sem assistir a algo e tirar a prova, eu só nunca havia sentido aquela vontade de conhecer seu trabalho como tive com outros diretores. “Melancholia” foi aquele que quebrou essa moda, não tão entusiasticamente como ele foi descrito, mas melhor do que eu esperava. Na pior das hipóteses, este longa mostra que o diretor por trás dele tem personalidade; gostando ou não do resultado — que não faz questão de ser agradável e nem deveria, dado o assunto — não há como negar que ele é bem expressivo. Talvez até demais.
É um dia de casamento. Numa elegante mansão, dezenas de convidados se acomodam no vasto salão esperando a chegada dos noivos. Justine (Kirsten Dunst) é a noiva e, por mais pomposa que seja sua festa, por mais certo que as coisas estejam dando ela não consegue se manter feliz. Todos ali celebram sua alegria inexistente enquanto ela não consegue fugir de seus próprios sentimentos. A relação com seus entes queridos é colocada em xeque, especialmente com sua irmã, que já tem motivos o bastante para se preocupar quando o planeta Melancholia pode estar em rota de colisão com a Terra.
O filme começa com uma série de cenas aparentemente aleatórias. É um começo devagar, lento demais para uma sequência que poderia ter ficado completamente de fora — e talvez devagar pelas cenas ainda estarem em câmera lenta. Há apenas música de tom espectral para acompanhar uma tomada da expressão quase apática da protagonista, salve um traço de tristeza; então outro plano geral dela sozinha num gramado extenso; um planeta e uma estrela solitária no espaço, logo engolida pela imensidão do outro astro; a moça andando com dificuldade por estar embaraçada em algo que tenta dominá-la; e um planeta chamado Melancholia batendo na Terra. Talvez o fruto de insegurança de um diretor que não acreditou no potencial de seu roteiro ou quem sabe um reforço proposital ao que ele tenta dizer; a única certeza é que uma demonstração dessas logo no começo do filme é menos um simbolismo e mais um tiro no pé da sutileza.
Basta ligar os pontos para ver que de ponderativo e subjetivo esta sequência não tem nada. Por si, ela já é um mau começo que só fica pior quando a história mostra o quão desnecessária ela é. “Melancholia” tem sucessos o bastante para não precisar de minutos de pura exposição maquiada de introdução no estilo filme-arte. Kirsten Dunst, por si, é o carro-chefe do que há de bom aqui. É só ver como sua personagem evolui emocionalmente ao longo do filme para notar uma ironia interessante: no fundo, seu estado final já estava presente desde o começo. Eu teria problemas com o roteiro se ela passasse de noiva no país das maravilhas à manifestação da anedonia, mas não cheguei a encontrar nada do tipo. Desde seus primeiros momentos ela já tem traços do que estava por vir, apenas tornando-os mais evidentes conforme a festa vai da recepção à valsa. Aqui o limite não é o enredo, tanta desolação logo transcende para o clima geral da obra, a qual se mantém propriamente desagradável no sentido de externalizar a situação da protagonista para a audiência. Seu estado mental é uma metáfora viva para a condição humana niilista que Lars von Trier tenta transmitir. Tão logo que as pessoas descobrem a verdade tão buscada, uma que revela que não existe verdade alguma, o mundo desaba. Só existe dor onde há consciência, como já foi dito certa vez.
Uma grande atuação pode fazer milagres por um filme, os bons ficam ainda melhores e os fracos mais longe do fracasso. Dunst tem poder o bastante para fazer o espectador sentir na pele um pouco do ódio que aqueles à sua volta nutrem por ela, os que tem que aguentar sua atitude inexplicavelmente mórbida pessoalmente. O desligamento de Justine da realidade deles faz sentido ao mesmo tempo que só tira os outros do sério. Mas que isso não seja interpretado como incoerência: ela faz o tipo da louca com um pouco de razão em sua cabeça bagunçada. Alguém poderia ouvi-la e ver que suas idéias não são tão piradas se ela fosse minimamente fácil de lidar. Talvez exista razão em aceitar que vida seja mais finita do que se acredita, mas ninguém consegue simpatizar com uma profeta do niilismo quando ela mal consegue manter uma conversa sem entregar-se aos sentimentos tristes e contagiar todos ao seu redor. Aos poucos ela fica mal e o ambiente pesado, primeiro com dúvida, depois pelo constrangimento. Do elenco, quem acompanha esse trajeto emocional, reagindo a ele e representando a recepção do ambiente, é Charlotte Gainsboroug no papel da irmã da protagonista, dedicada a lhe dar suporte sempre e mostrando, mais do que qualquer coisa, como é difícil fazer seguir os impulsos de um coração tenro quando a cabeça já está esgotada. Eventualmente, ela e o clima do filme tornam-se cada vez mais melancólicos; uma mensagem clara o bastante para não precisar da metáfora de um planeta chamado Melancholia esmagando a Terra para passar o recado.
Versões diferentes de um mesmo filme já mostraram várias vezes como a adição de uma cena ou duas pode fazer toda a diferença. “Melancholia” é um destes casos que seria mais feliz sem uma desnecessária sequência de quatro minutos, que além de entregar o filme inteiro nos primeiros momentos ainda insulta a capacidade da obra de desenvolver seus temas. O simbolismo é forte quando sutil — e notável o bastante, claro — diferente do que se vê aqui. Pelo menos eles já ostentam a invejável qualidade dos visuais que nunca deixam de impressionar ao longo do filme. Talvez a estética seja o único aspecto completamente livre das críticas, mesmo não sendo o único sucesso aqui, como a atuação incrível de Kirsten Dunst mostra.