Antes de qualquer coisa, devo admitir que sou meio bobo por toda a atmosfera que rodeia o Noir: a elegância dos ternos, chapéus, carros e cigarros; o pessimismo das tramas e seu ar de austeridade; e é claro, as charmosas e enigmáticas mulheres que completam o conjunto espetacular de conceitos. Mas de longe o mais atrativo do gênero é a inteligência dos filmes, que instigam o espectador a prestar atenção nos mínimos detalhes para poder saborear melhor a sutileza do gênero.
“Double Indemnity” não é diferente e consegue enquadrar todos os aspectos citados brilhantemente. Um cenário intrigante e misterioso é montado, completo com toques de suspense salpicados ao longo da narração do protagonista Walter Neff (Fred MacMurray). O filme tem seu começo praticamente em seu fim, com o personagem principal recontando os eventos que levaram à sua situação atual. Detalhe por detalhe é incluso, misturando uma narração intuitiva com a tensão criada pela curiosidade sobre que acontece a seguir. Ao contrário de vários filmes, a narração se mostra presente durante todo o tempo; descrevendo sensação e pensamentos do narrador minuciosamente, porém mantendo o equilíbrio entre sutileza e exposição.
De qualquer forma, manter esse equilíbrio narrativo de nada adianta quando a trama é ruim, mas por sorte este não é o caso. “Double Indemnity” é um filme com pouco potencial para decepção. A trama aborda a rede de intrigas envolvendo sedução, crime, mulheres e traição. Colocando uma figura forte representando cada sexo, este longa-metragem mostra como a relação entre os dois se desenvolve nas mais traiçoeiras situações, a principal sendo o envolvimento de Neff num plano de assassinato. Mas por mais incomuns e graves que estes possam ser, em algum momento os personagens pararão para acender um cigarro, servir uma dose de uísque e divagar sobre a vida, o que não é necessariamente ruim, apesar de recorrente. É um daqueles toques que fazem dos personagens tão únicos: eles seguem com hábitos de sempre independentemente dos crimes que cometem como se fossem apenas detalhes numa rotina.
A vida de Walter Neff se resume ao ciclo acima em ocasiões diferentes até que seu caminho se cruza com o de Phyllis (Barbara Stanwyck) para novamente o ciclo se repetir. Indo a trabalho e encontrando um pouco mais do que isso, Neff pouco faz para resistir à natureza sedutora da moça, assim dando curso ao complexo enredo. Facilmente o ponto forte do filme é a rede de relações formada entre personagens tão divergentes uns dos outros: desde o incansável Walter — sempre tentando estar um passo a frente de tudo, cortejando mulheres ou conquistando novos clientes; a manipuladora e misteriosa Phyllis, inconsequente ao buscar suas metas; e até o curioso Barton Keyes, o chefe de Neff que sempre tenta visualizar detalhes escondido no segundo plano, prática que se mostra útil em seu ramo de trabalho.
Ao contrário da maioria dos filmes em que a trama começa tranquila, o longa já começa com uma bomba em mãos, desarmando-a aos poucos na progressão do enredo. Tudo vai fazendo mais sentido ao mesmo que tempo que o suspense toma conta e o enredo se engrossa. Isso é especialmente genial, pois normalmente não se sabe nada no começo do filme e o suspense toma forma à medida que mais informações são adicionadas. Nesse caso já temos uma ideia do que acontece, mas há apenas especulação sobre o que levou até aquilo. Não há apenas suspense na trama, existe também a sombra do suspense especulativo, que faz do filme um excelente canal de tensão e excitação.
As ambições e sentimentos dos personagens estão sempre em jogo, divididos por uma linha tênue que sem demora tem sua opacidade mexida até que os lados não sejam mais identificáveis. O que uma vez começou com um simples flerte logo se transforma em sentimento, mudança que, mesmo sincera, está presa a um agente manipulador por trás de si. Adicione o fator crime ao jogo e basicamente temos a premissa do filme. Enquanto isso, tudo é minuciosamente observado por um terceiro elemento que tenta enxergar a delgada linha iluminadora nesse desarranjo. O papel de cada ator na interpretação desses personagens é obviamente crucial para uma representação adequada e nesse caso não desaponta. Composto por um elenco forte, “Double Indemnity” é mais do que feliz em seu trabalho de entregar personagens fortes de um jeito convincente. Nunca no filme há um comportamento inorgânico por parte do elenco. A criação de vínculos entre os indivíduos acontece naturalmente, assim como ocorre com o desenvolvimento desses laços; dessa forma mantendo a sutileza comum ao gênero.
No final das contas, “Double Indemnity” se mostra como uma das melhores obras do Noir de todos os tempos. Quando vi este longa pela primeira vez, tinha assistido a poucos Noir, mas ainda tinha a impressão de que ele seria especial. Felizmente, estava certo. Faz pouco sentido, mas felizmente “Pacto de Sangue” faz muito mais sentido que eu e merece ser assistido, comprado e venerado pela qualidade que apresenta.