“Qual seu filme favorito do Kubrick?”. A resposta para isso costuma variar entre as mesmas opções quase toda vez: “The Shining”, “A Clockwork Orange”, “Full Metal Jacket” e “2001: A Space Odyssey“. Outros como “Spartacus” e “The Killing” acabam sendo esquecidos sem mais e, assim, o senso comum passa a associar o diretor aos mesmos quatro trabalhos, talvez cinco. O mesmo acontece com outros artistas, não há como impedir que algumas obras sejam mais populares e, conseqüentemente, associadas ao cineasta, até porque essas costumam ser as de maior qualidade. Esse terror psicológico com Jack Nicholson, inspirado num livro de Stephen King, traz ambas qualidade e singularidade como fortes razões para ser lembrado. Realmente é um dos grandes.
A família Torrance vive na pequena cidade de Boulder, Colorado. Pai, mãe, filho pequeno. Mais uma família tão ordinária quanto qualquer outra. Então surge uma possibilidade de mudança quando Jack Torrance (Jack Nicholson) faz uma entrevista de emprego para o trabalho de cuidador do Hotel Overlook. O lugar fecha por cinco meses durante o inverno e precisa de alguém para manter algumas coisas funcionando até a reabertura. Jack vê isso como a oportunidade perfeita para escrever seu livro, levando junto sua mulher Wendy (Shelley Duvall) e filho Danny (Danny Lloyd) para passar a temporada lá. As coisas ficam progressivamente esquisitas conforme o passado tenebroso do hotel passa a se manifestar e afetar os três hóspedes.
Talvez a imagem acima tenha feito sozinha a fama de “The Shining” na cultura popular. Camisetas, imagens engraçadas, paródias, clipes isolados, obras fazendo referência e até comunidades de Orkut — membros de “Soy Mucho Loco”, uni-vos. Deve ser a mesma impressão em todos esses casos: a cara de um Jack Nicholson completamente maluco emoldurada num buraco de porta despertando a curiosidade sobre a origem de tal cena. As pessoas descobrem de qual filme ela vem e o assistem ansiosas pelo grande momento, que, ironicamente, acontece durante o clímax. A narrativa funciona antes mesmo de ter a chance de funcionar por conta própria. O grande momento chega quando todo o desenvolvimento leva até o momento mais crítico de resolução de enredo. Mesmo se o roteiro falhasse em construir antecipação pelo clímax, isso já aconteceria porque o espectador chega com uma expectativa bem específica.
Felizmente, o roteiro não deixa a desejar e cumpre seu papel. Se faz alguma coisa, essa expectativa e curiosidade servem como um bônus para fazer o espectador prestar mais atenção no personagem de Jack Nicholson e ver como ele vai de um pai de família de meia idade até o maluco arrombador de portas. Como um terror psicológico, é elementar que exista algum tipo de processo ou desenvolvimento tocando a dimensão mental do personagem, do espectador ou de ambos. Nicholson é o objeto de destaque em “The Shining” como aquele que incorpora as mudanças comportamentais e psicológicas, desenvolvendo-se como personagem mais que os outros. Há algo de errado no hotel, alguma força que mexe com as pessoas de forma sutil e progressiva. Assim, dois elementos se manisfestam na construção de uma história de terror que não é só um conto de insanidade, alguém enlouquecendo por pressão ou por conflito, nem um conto clássico de mansão mal assombrada. Há uma combinação sofisticada desses dois elementos, com ampla margem para ambiguidade e interpretação.
Nada se explica totalmente. Questões ficam no ar e as regras são quebradas vez ou outra para não deixar o sobrenatural previsível e sem surpresas. Há até discussão sobre o significado do final para quem gosta disso e outras imagens bizarras, desacompanhadas da exposição agressiva explicando existência e função na história. Felizmente, há informação suficiente para que não haja um sentimento de insatisfação por omissão, significados abertos demais sem um mínimo de informação para sustentar palpites. Há um bom equilíbrio em “The Shining”. Além do enredo, o protagonista é essencial para chamar a atenção do espectador para a performance por trás da escrita e, diferente de entender racionalmente a situação, passa a vivenciar sua influência em Jack Torrance.
Jack Nicholson age como Jack Nicholson, por um lado. Ele se apresenta como o ator suave e charmoso de sempre, versátil na transição entre sentimentos de seriedade e chacota, um clássico de sua persona popular de ator excêntrico ou meio maluco, como o senso comum acaba o chamando. A outra face de sua interpretação incrível é a nota subtextual de perversão nessa dinâmica. Nicholson é famoso por ser engraçado até quando não tenta ser. E existem tipos e tipos de humor, do clássico bobão ao ácido ao maldoso. Numa repropositagem de uma qualidade pessoal, o ator realiza a transição pelos limites da sanidade, passando por estágios diversos de igual valor de forma que o processo fica tão interessante quanto o ponto final. Quanto a Shelley Duvall, ainda é padrão criticar sua interpretação, que de fato não iguala a de seu parceiro de cena, mas nem por isso é digna de esquecimento. Seja lá o que Stanley Kubrick fez, conseguiu extrair dela o terror de uma pessoa das mais ordinárias, comum e sem nada de mais sobre si, ambos ótimos contrapontos para a interpretação ameaçadora e vigorosa de Nicholson.
Há situações, a maioria delas talvez, em que o trabalho de direção, mesmo os mais competentes, é meramente funcional por ser uma ferramenta facilitadora do que se deseja transmitir com o roteiro. Ou seja, colocar a câmera nos lugares certos para que se entenda que esse personagem fala com aquele e que dois eventos acontecem em paralelo, usando dois exemplos clássicos. Por outro lado, existem exemplos extraordinários que chamam a atenção para si porque trabalham em função da história ativamente e com profundidade, mantendo a sofisticação de um artifício que não exclama suas intenções. “The Shining” funciona em grande por conta da direção de Stanley Kubrick introduzindo imagens consonantes com a proposta de cada cena. É simples como deixar uma tomada se estender pelo tempo que for necessário e não se degradar pela necessidade nervosa de inserir cortes em ângulos alternativos e tomadas de reação. Simples como escolher um plano aberto e centralizar o sujeito para amplificar a percepção de perspectiva. Eficiente como abraçar o uso pioneiro da Steadicam ou acompanhar um golpe de machado com um movimento horizontal de câmera para dar mais impacto à ação.
São muitos os motivos para gostar de “The Shining”. É um filme de excelência e de iconografia que até hoje faz muito para disseminar a reputação da obra décadas após o lançamento original. Seja o rosto insano de Jack Nicholson no rombo da porta ou o padrão do carpete do Hotel Overlook nos planos de fundo dos celulares dos jovens, a atenção ao detalhe aqui encontra sucesso igualado aos esforços maiores. Não é sempre que isso acontece, mas, claro, não é sempre que um filme como “The Shining” aparece.