Renegado por Stanley Kubrick, minuciosamente controlado por Kirk Douglas e escrito pelo então banido Dalton Trumbo, “Spartacus” é um Épico romano marcado por atritos na produção que rivalizam a ambição dae sua história. Particularmente, não esperava ver nada extraordinário aqui; a vontade de assistir foi mais para matar uma curiosidade de tempos, ver como contaram a história de Espártaco antes dos seriados sonharem em serem feitos. Realmente não esperava encontrar um Épico de alto nível e muito menos um dos melhores filmes que já vi na vida. Quem diria que o melhor de Stanley Kubrick seria exatamente o trabalho que ele mais odeia de sua carreira?
Filho de uma escrava com seu senhor e escravo desde menino, Spartacus (Kirk Douglas) acaba sendo escolhido para se tornar gladiador nas arenas romanas. Treinado, mas nunca domado, o escravo alimenta sua revolta a golpes de espada e treinamento pesado. Finalmente, ele e os outros gladiadores se viram contra seus mestres em busca de sua liberdade, conquistando-a e expandindo seu movimento com cada escravo libertado. Roma, por outro lado, não se mostra muito feliz com essa revolta em terras próximas e tomará as medidas necessárias para que os escravos sejam colocados em seus lugares.
Uma das principais críticas que vi sobre este longa é a suposta falta de foco na história, que resultou numa colcha de retalhos criativa sem personalidade. Não posso dizer que concordo com essa afirmação, embora seja um fato conhecido que a produção foi turbulenta. Normalmente quando falam em “Spartacus” ouve-se o nome de Kubrick como diretor, mas ele nunca o abraçou com o mesmo carinho que os fãs associam a obra a ele. A verdade é que este era um projeto pessoal para Kirk Douglas, uma chance para ele provar que tinha cacife para estrelar em um Épico histórico como Charlton Heston fez em “Ben-Hur”, papel que Douglas cobiçava. O resultado é, possivelmente, a maior briga de egos da Hollywood clássica. De uma batalha de diretor contra produtor contra ator contra roteirista e contra fotógrafo sai uma enorme guerra de escravos contra romanos e um filme de extremo bom gosto.
Talvez a melhor parte aqui seja também a mais sutil. As 3h16 de duração passam tão suavemente que o único indício de que tanto tempo passou é o relógio, caso contrário daria pra dizer que as coisas não duram tanto. Aos que consideram a duração assustadora digo que este é um ótimo exemplo do poder de uma boa história; que faz 196 minutos passarem rápido e 80 se arrastarem quando em falta. Diferente de outras grandes obras, esta não foi uma que me fez ficar ansioso pelo que viria a seguir, adivinhando e ligando os pontos para ver se minha expectativa se realizaria; “Spartacus” me manteve preso porque aos poucos me convenceu que o que estava por vir não poderia ser ruim, independente do que fosse. Nunca alimentei nenhuma expectativa de que o resultado fosse ser muito diferente do que se espera numa trama desse tipo — um grande líder, a batalha colossal e um vilão terrível. Minha surpresa foi por ver que não era só isso, pois substância não é algo que falta aqui.
“Spartacus” tem tudo isso e mais. Kubrick entrega uma das sequências de batalha mais singularmente dirigidas que já vi. Usando cerca de 50 mil soldados espanhóis como extras, ele troca o clichê de mostrar um lado sendo chacinado pelo outro por uma técnica que passa a mensagem de uma forma diferente, mas igualmente clara: usando os números e a mise-en-scène para potencializar esse efeito. Sendo assim, devo discordar quando afirmam que Kubrick fez apenastrabalho braçal aqui. Ele não só teve a oportunidade de dirigir cenas grandiosas como essa como também teve culpa nas brigas por querer dominar a posição de diretor de fotografia, para o grande desgosto do homem contratado. Não é porque ele não teve controle absoluto — da direção ao carregador de caixas — que a obra deixa de brilhar. Quando se tem um elenco como esse é difícil as coisas darem errado.
Além do próprio Kirk Douglas, que mostra em sua atuação o quanto ele se importava com esse filme, existem outros atores para cimentar os personagens como os agentes do sucesso da história. Como disse, não era tanto o que ia acontecer que criava antecipação, eu queria saber mesmo é como as coisas iam rolar. Enquanto os eventos em si não contam nenhuma novidade para os padrões de hoje, permanece o prazer de ver diversas motivações em ação ao mesmo tempo. Gracchus é um apreciador da bela vida, que conquistou tudo o que tem através de sua inteligência. Um esquema ali e uma manobra política é o resultado, colocando-o mais perto de seu paraíso de poder, mulheres e dinheiro. Interpretado por ninguém menos que Charles Laughton, o personagem é uma afronta direta aos valores do Crassus de Laurence Olivier, que acredita no uso da força para conseguir o que quer. E o que seria isso? Tudo o que Spartacus é: um herói, um marido, um líder que não precisa dar golpe para chegar onde está. Histórias que superficialmente só se conectam por conflito de interesses ganham uma dimensão dramática muito maior com o roteiro de Dalton Trumbo. Realmente não foi à toa que esta foi a obra responsável pela quebra da infame lista negra de Hollywood. Enquanto isso, na superfície dessa profundidade narrativa, visuais e músicas dão vida a aquele universo de guerra, romance e sonhos de liberdade. Menos pelo nível de grandeza dos sets e mais pela fotografia, os visuais que poderiam ter envelhecido mal conservam certo charme artístico por serem tão bem capturados.
Com uma história bem cadenciada, personagens cativantes e uma fotografia competente sobra para a trilha sonora ser a cereja do bolo. Alex North cria as melodias que, de certa forma, também são essenciais para o sucesso de “Spartacus”. Elas deixam a experiência mais fluída por serem algo a que a audiência pode se agarrar e evitar que qualquer indício de tédio surja. Mais importante que isso é sua capacidade de tornar alguns momentos verdadeiramente épicos, como o próprio gênero sugere. Cenas que poderiam ser consideradas clichês, desde o romance até o sacrifício final, ganham o status de ícones e garantem a “Spartacus” vários momentos inesquecíveis.
No fim das contas, William Wyler esnobar Kirk Douglas em “Ben-Hur” foi uma ótima decisão. Charlton Heston se estabeleceu no papel mais clássico de sua carreira e Douglas mais do que mostrou ser capaz de estrelar numa obra produção gigantesca. Uma mistura de elementos que deu incrivelmente certo, “Spartacus” é uma obra que merece ser vista por contar uma história relativamente simples em mais de 3 horas e não ser cansativa no meio do caminho. Independente do que Stanley Kubrick e seus fãs digam, há um grande filme aqui.