Melhor filme da década? Não. Antes de qualquer coisa, é melhor voltar um pouco. Aqueles sem entender nada talvez estejam tendo a mesma surpresa que eu e uma porção de pessoas tiveram ao ver que, de acordo com a revista francesa Cahiers du Cinéma, “Twin Peaks: The Return” é um filme. Não só isso, o melhor de toda a década de 2010. Parece que alguém não percebeu que o Netflix lista 18 episódios disponíveis sob esse título. Talvez os responsáveis tenham esquecido a diferença entre televisão e cinema, além das duas temporadas que saíram em 1990 e 1991. Mas não, eis mais uma para a lista de afirmações críticas artisticamente ousadas da história da humanidade: desafiar os limites da forma e dialogar sobre as obras tais como são, narrativa sem apegos desnecessários a formatos predefinidos. As clássicas palavras do crítico que mais se preocupa com o embelezamento de seu texto através de adjetivos e com as discussões super-estendidas dos discípulos de André Bazin.
25 anos se passam desde a investigação do Agente Especial do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) na pequena cidade de Twin Peaks. O assassino da jovem Laura Palmer é revelado como seu próprio pai, Leland Palmer, mais especificamente, por ele enquanto estava possuído pela entidade maligna Killer Bob. Mas o mistério não morreu com isso, e logo Cooper se encontrou no rastro da entidade para dar um fim definitivo a ela. Sua missão o eventualmente o leva ao enigmático Black Lodge, um lugar a par da realidade e suas regras, morada de espíritos, entidades, duplicatas e nenhuma lógica. Cooper chega lá buscando dar um fim à loucura, mas é ele quem fica preso na dimensão alternativa enquanto Killer Bob escapa e usa seu corpo como hospedeiro. 25 anos depois, a cidade de Twin Peaks tem novos rostos entre os antigos, que envelhecem junto dos mistérios não resolvidos.
Não há como usar outra coisa além de um resumo dos últimos eventos da segunda temporada como premissa de “Twin Peaks: The Return”. Aliás, não faz o menor sentido tentar assistir sem conhecer o que veio antes, por mais que essa não seja formalmente chamada de terceira temporada de “Twin Peaks”. Foi escolhido um novo subtítulo para engrandecer o retorno de um seriado cult dos Anos 90, um evento especial totalmente inesperado em 2017, quando as pessoas já estavam conformadas com o não final de antes. Então nasceram os subtítulos “The Return” e “A Limited Event Series”. Bem original. Para quem já conhecia de antes, não deixa de ser a terceira temporada nascida para concluir de uma vez por todas os mistérios deixados em aberto. Que tipo de seriado termina com o protagonista possuído por um espírito maligno? Nada contra um final não convencional ou essa idéia especificamente, mas não pareceu nem um pouco a conclusão que “Twin Peaks” merecia.
De nome novo ou não, essa ainda é uma continuação da história original, pois não seria concebível ignorar os personagens antigos e deixar de lado as pontas soltas de antes. Quem lê o nome “Twin Peaks”, pensa no Agente Cooper, em Laura Palmer e no Great Northern Hotel da família Horne. Deixar tudo isso de lado a fim de contar uma história nova com novos personagens na mesma cidade seria esquisito, no mínimo, mas pelo menos então poderia ser chamada de spin-off ou de seriado completamente novo. Pensando agora, talvez fosse melhor desse jeito. Considerar “Twin Peaks: The Return” uma continuação é ser forçado a encarar uma história que não faz muita questão de dar continuidade e desenvolver pendências, fazendo isso de forma irregular e usando muito do tempo em arcos e em personagens novos que não vão a lugar algum.
Algumas perguntas ficaram sem resposta ao fim da temporada de 1991. Como Cooper vai escapar de sua prisão? O que aconteceu com Annie? O que é o Black Lodge? Como deter Killer Bob? Então se passam 26 anos entre o fim da segunda temporada e o lançamento desse retorno — 25 dentro da história — e as perguntas se multiplicam. O que o Cooper do mal fez em todos esses anos? Qual o destino dos personagens conhecidos nesse meio tempo? Como o tempo no Black Lodge afetou o Cooper original? Quem são as caras novas? São muitas perguntas. Nenhuma delas absurda, apenas naturais para quem se importa minimamente com o desfecho da história. Sem contar a empolgação de ver um projeto revivido a despeito de todas as chances. Se mexiam nele em 2017, só poderia ser por um grande motivo. Mas não, “Twin Peaks: The Return” tinha sua própria agenda.
Parte dela é boa. “Twin Peaks: The Return” traz um novo visual na representação da cidade e seus ambientes, até indo além conforme os limites da realidade são quebrados e novos locais são introduzidos. Nasce uma nova estética na cinematografia de Peter Deming, talvez o único aspecto que consegue superar a série original. Mesmo isso não é o bastante para tornar “Twin Peaks: The Return” uma experiência gratificante e que possa ser chamada de continuação ou conclusão satisfatória. O que resta de bom para ser aproveitado num primeiro momento é reencontrar tudo aquilo que até então estava abandonado e esquecido. Foi de esquentar o coração ver que a cidadezinha de Twin Peaks ainda estava de pé, diferente e igualzinha ao mesmo tempo, algumas coisas mais modernas e renovadas, outras pessoas com o mesmo jeitinho e rosto, só que com algumas rugas a mais. Era como se sentir em casa. Tirando algumas omissões que não fizeram falta, o reencontro com o Policial Hawk (Michael Horse), com os agentes Gordon Cole (David Lynch) e Albert Rosenfeld (Miguel Ferrer) e com ninguém menos que Bobby Briggs (Dana Ashbrook) foi, por um momento, aquilo que se esperava de um retorno.
Outros novos personagens, como o Cooper do mal e o sempre excelente Robert Forster substituindo Michael Ontkean como o Xerife da cidade, ajudam a expandir os motivos para gostar da mitologia da obra, ao passo que o resto dos novos rostos passa longe disso. No máximo, chegam a dar margem para as micro-histórias típicas da série original e despertar curiosidade sobre quem são. Pessoas esquisitas de agenda estranha, objetivos nebulosos e importância desconhecida. Pois bem, muitos deles continuam com importância desconhecida. Por mais que sejam responsáveis por criar o tipo de entretenimento secundário, mas divertido, que preencheu muitos dos episódios de antes, ele é insuficiente para tomar a frente diante de um vácuo narrativo na trama principal. É satisfatório ver um fechamento apropriado para a história de Ed e Norma, uma presença mais ativa do FBI e ver o que o futuro trouxe para Bobby e Shelly. Só nunca trocaria uma continuidade do arco do Agente Cooper por isso. E se não fosse o bastante, a troca fica ainda menos interessante quando se fala em personagens novos, filhos de não sei quem ou inéditos que se categorizam entre inúteis ou curiosamente convenientes para o enredo.
Isso é apenas um demonstrativo da narrativa desbalanceada de “Twin Peaks: The Return” e seu avanço de enredo inconstante entre largos espaços preenchidos com desinformação, novos elementos ou perda de tempo. Sem nem resolver as questões pendentes, outras novas são adicionadas, complicando ainda mais o entendimento do panorama geral de todo o lado sobrenatural da trama e deixando de lado o que é importante. Até se poderia dizer que o conteúdo busca aprofundar a mitologia e deixar o mistério ainda mais complexo que a simples existência de uma dimensão alternativa. A tradução disso muitas vezes se resume a trechos longos ou capítulos inteiros com pouca ou nenhuma informação, seqüências de quebrar a cabeça e então uma informação que cai do céu e avança o enredo por milagre. Uma forte maquiagem sobrenatural tenta, apenas tenta, e não consegue esconder quão conveniente algumas soluções se mostram. É uma narrativa heterodoxa misturada com exposição da mais descarada. “Twin Peaks: The Return” se perde e, assim, perde o espectador no meio do caminho.
Os primeiros comentários sobre a nova temporada me deixaram receoso. Bons ou ruins, eles sempre indicavam um produto bem distante da expectativa para uma continuação de antes, como se alguém assistisse a uma comédia romântica e comentasse a ação, os efeitos especiais e a tensão. Do que se está falando mesmo? Sempre pareceu que “Twin Peaks: The Return” era diferente no mau sentido. Isso com certeza me fez enrolar para assistir até que finalmente voltou para o Netflix depois de uns anos. E ainda, às vezes foi muito difícil encontrar forças para continuar depois de começar depois de começar. Já não me via engajado e acabei dando alguns intervalos de dias entre episódios por pura preguiça e desinteresse de encarar 58 minutos sem saber se valeriam a pena. Não valeu mesmo em várias ocasiões, o que me fez pensar que são episódios demais para a história que se tenta contar, sendo que quinze desses colocam o protagonista num limbo narrativo bastante infeliz. Surpreendente é quem conseguiu maratonar os dezoito episódios.
Seria esse de fato o melhor filme ou melhor série da década? Arriscaria dizer que “Twin Peaks: The Return” não é o melhor da semana em que foi lançado. Talvez no começo. As primeiras semanas traziam promessa, o mistério de começo de temporada que serve para despertar o interesse do espectador e gerar dezenas de dúvidas normalmente respondidas nos episódios seguintes. É difícil não se empolgar pelo menos um pouco quando personagens sumidos há quase 30 anos aparecem novamente com seus rostos mais enrugados, mas isso não dura. Os problemas de uma narrativa mal planejada para uma continuação logo chamam mais a atenção. Com tanta enrolação, torna-se difícil aproveitar as partes boas, que funcionam como deveriam e dão um gosto de como uma terceira temporada poderia ter sido num plano ideal. Assim, depois de 26 anos e 18 novos episódios, “Twin Peaks” continua sem um final digno.