As pessoas falam muito desse filme. E isso é ótimo, funciona como um cartão de visita para o trabalho de um dos maiores diretores da história, alguns até perguntam quem e se surpreendem quando descobrem que é Martin Scorsese. Não me surpreenderia muitas pessoas explorarem o resto de seu repertório a partir de “Shutter Island”. Caso exista algum tipo de preconceito com filmes antigos, ainda encontraria aqui um dos bons e teria um incentivo a mais para explorar os que vieram antes. Sim, a popularidade é mais do que justificada nesse caso. Não há nem o que dizer contra, apenas comemorar que um filme tão bom tenha feito tanto sucesso.
Dois policiais são enviados numa missão das mais atípicas. O delegado Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e seu novo parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo) partem para a Ilha Shutter, onde o Hospital Ashecliffe abriga criminosos considerados insanos e intratáveis pelos métodos tradicionais. Sua tarefa é investigar o desaparecimento súbito de uma paciente condenada por matar seus filhos. Não há uma pista sequer para auxiliar a busca e a ilha tem seus próprios segredos, vários que a administração do hospital não se mostra disposta a compartilhar. Entre desconfiança, mistério e uma tempestade se aproximando, a investigação se torna ainda mais difícil conforme as informações confundem a dupla.
Gostaria de abrir um parênteses aqui: acabei de descobrir que a recepção da crítica foi bem morna. Até a escrita desse texto, tinha como certeza que o sucesso havia sido universal. O público com certeza gostou, sua reputação popular é muito positiva e basta perguntar por aí. A nota no IMDb está em mais ou menos 8,2 desde sempre. A bilheteria fala por si, 294 milhões de dólares em ingressos contra 80 milhões de orçamento. A surpresa foi ver que a crítica ficou na casa da nota 6 em ambos Metacritic e Rotten Tomatoes, com alguns chegando a chamar “Shutter Island” do pior filme de Scorsese. Bizarro como eu poderia dizer o mesmo de “Mean Streets” ou “Cape Fear” sem estar errado. Deus abençoe a diversidade de opiniões.
Parece que um dos principais pontos criticados é Martin Scorsese abraçar a proposta simples de fazer um filme de gênero, um suspense no estilo de Alfred Hitchcock com uma grande reviravolta. Eis que me pergunto se isso é tão pior que os trabalhos do passado, carente de profundidade e visão artística; se de fato é, então qual tipo de genialidade diferenciada não se encontra em “Shutter Island”. Ao meu ver, não há nada que separe esse suspense psicológico-atmosférico sobre policiais investigando uma ilha misteriosa de uma história sobre gângsteres ítalo-americanos. Não vejo a barreira inerente entre essas propostas. Uma pode funcionar tão bem quanto a outra.
Scorsese não parece estar emulando ninguém. Se está, o faz tão à sua maneira que nunca se percebe sinais de artificialidade ou de um diretor fora de seu território, nu e sem saber como proceder. “Shutter Island” conta uma grande história. Direta ao ponto, sim, mas realizada com a sofisticação de ir além da primeira experiência. Enquanto existem inúmeros filmes construídos em torno de uma reviravolta que numa segunda vez já não têm a mesma força, esse é um que muda completamente numa segunda assistida e talvez até melhora. Numa primeira vez, aprecia-se a construção de atmosfera e o desenvolvimento do mistério. As perguntas surgem, um novo cenário nasce e a satisfação se mede pela forma como são respondidas. Até aí, nada de novo, o que não é problema porque algo excelente pode sair dessa dinâmica. Depois que o filme acaba e o espectador decide assistir de novo por qualquer razão, então fica mais interessante conforme se percebe quantas dicas a história dava desde o começo sobre a verdade por trás da trama. Aliás, dicas não fazem jus à direção inteligente trabalhando a narrativa visual subliminar com a mesma dedicação da narrativa primária. Está tudo nos detalhes.
Está tudo fora dos detalhes também. Sem reparar nos enquadramentos de propósito oculto, ainda se encontra um filme de encher os olhos com detalhes e com beleza, com o olhar que transforma uma ilha na costa de Boston em um pesadelo inescapável. É claro que é uma ilha isolada do mundo, é claro que não há como fugir e é claro que uma tempestade chega para dificultar ainda mais a situação. Isso é apenas a parte externa de uma caracterização básica, seja narrativa ou esteticamente. Nenhum espectador se aterroriza com trovões e com chuva, já passou o tempo em que isso fazia alguém tremer, portanto cabe à exploração desses conceitos trazer os sentimentos de confinamento e de claustrofobia, de confusão e de paranóia em cima desses elementos para tornar desagradável uma realidade que já era inconveniente. Estar na posição do protagonista é incômodo, explorar o lugar com seus olhos proporciona uma perspectiva tão mais dramática e potente dos conceitos básicos citados anteriormente. Uma coisa é chover, outra é começar a cair um temporal quando você está no fio da navalha de questionar sua sanidade e poderia viver sem mais um incômodo. O pacote fecha com a direção extraindo o melhor de cada situação, com a cinematografia criando imagens expressivas dos cenários ímpares e com a atuação perturbadora de Leonardo DiCaprio confirmando os efeitos dessa situação enlouquecedora.
Por algum motivo, parece que “Shutter Island” não agradou a todos. Os motivos para isso, não consigo imaginar espontaneamente como em outros casos que parecem ser do tipo “ame ou odeie”, que não deixam dúvida sobre serem divisivos. O diálogo de um coadjuvante pode ser o bastante. “Insterstellar” sabe muito bem o efeito que isso teve quando espectadores passaram a desgostar instantaneamente do filme. Nesse caso, realmente não saberia apontar. Será algum tipo de birra com a reviravolta final? Quem sabe. A única coisa que encontro aqui é mais uma evidência de que a década de 2010 foi muito frutífera para esse diretor veterano. Trabalhar por tanto tempo e chegar em sua quinta década de trabalho, com “Shutter Island” no início e “The Irishman” no fim, é um feito e tanto. Menos para quem não gosta deles. Não tenho dúvidas que os críticos desse último também estejam à solta.