Vi “The Pianist” uma vez só há muito tempo e sempre tive certeza que era um excelente filme. Diferente de outros que se perdem na memória e se tornam objetos ruins de discussão, esse se conservou melhor ao menos no que se refere a sua qualidade. Nunca coloquei em xeque sua competência, mesmo esquecendo de alguns detalhes. Foi por acaso que minha mãe trouxe esse e mais dois DVDs de Portugal, eu nem tinha pedido nada de presente e não poderia ter ficado mais grato por descobrir um dos melhores trabalhos de Roman Polanski, um conto de guerra através de um ponto de vista ímpar.
Władysław Szpilman (Adrien Brody) é um pianista renomado em Varsóvia, apresenta-se ao vivo com freqüência na rádio da cidade e leva uma vida de satisfação fazendo o que gosta. Isso muda de repente quando o exército nazista bombardeia a cidade em sua invasão à Polônia e começa a instaurar medidas radicais contra a população judia. Judeus não podem mais ser donos de negócios, não podem ter mais do que uma certa quantia de dinheiro em casa, devem todos se mudar para um setor específico da cidade e mais. Szpilman se vê impotente para fazer qualquer coisa sendo um artista em meio a uma situação de injustiça e brutalidade. Resta apenas ajudar sua família a sobreviver.
Esse não é só mais um filme de Segunda Guerra, só mais um de judeus. “The Pianist” é bem mais do que uma obra que se aproveita da sensibilidade de um período de crueldade humana em alta. Existem histórias de todos os tipos, desde as contadas nos campos de batalha, com chumbo e sangue, até aquelas ambientadas nos lugares adjacentes, longe do palco do conflito aberto. Um cenário comum entre os incomuns é abordar a situação dos judeus, mais especificamente os campos de concentração. Algo mais ou menos assim se encontra aqui. Há muito mais, profundidade que vai além de representar sofrimento atrás de sofrimento, os pijamas listrados e as grades de arame farpado. Essa é a experiência completa, uma odisséia de sobrevivência contra chances pequenas sem ofender o bom senso. Cometer esse erro seria como colocar o soldado correndo no meio de um tiroteio sem ser alvejado nenhuma vez, mesmo não sendo impossível alguém sobreviver à guerra.
“The Pianist” traz a história completa de alguém que sofreu os crimes contra seu povo desde o princípio. Sem cortar direto para Auschwitz e mostrar homens e mulheres subnutridos tentando se manter de pé contra qualquer noção de possível. Szpilman estava muito bem e saudável com sua família num apartamento de Varsóvia em 1939, quando ainda nem se falava em Aliados e em declarações de guerra. Então os meses passam e chegam 1940, 1941, 1943 e adiante. O que acontece com as pessoas que tinham uma vida normal num momento e em outro passaram a ser sistematicamente roubadas de tudo o que tinham até perder seu direito de viver? Nada contra as histórias que decidem entrar direto nos campos de concentração e mostrar o que acontecia lá. Acontece que essa é outra história.
E quanta sensibilidade no retrato de um homem sem poder. Por um lado, é como dizem: artistas vão pintar quadros e recitar poesia contra um tiro de rifle? É bom que funcione, pois a caneta só é mais poderosa que a espada no papel. Um pianista no meio da guerra certamente não pode dar uma de bardo e virar a maré da batalha com sua música. Eis o grande conflito de alguém que não é mais que um homem contra outros tantos que o consideram menos que lixo. É uma vulnerabilidade comparável a de um animal encurralado que sequer tem presas e garras para um ataque. “The Pianist” não é “Rambo” nem “Predador” com suas armas improvisadas, nada como um instinto de sobrevivência transformando o homem em predador.
É impotência que se vê nas situações em que o protagonista é colocado. O roteiro de “The Pianist” nunca passa a impressão de criar um evento especialmente complicado a ser superado como um obstáculo lúdico-narrativo, são sempre situações razoáveis e às vezes até comuns em sua superfície. Isto é, o conceito de comum depende do sujeito na guerra. Para uns, a vida segue como se nada tivesse mudado; para outros, qualquer vacilo pode significar a diferença entre viver e se tornar um cadáver inchado no córrego. Todas as situações soam fidedignas, nunca fabricadas com a maquiagem cinematográfica que as deixa mais dramáticas e extraordinárias, mesmo que as vezes o cenário não tenha absolutamente nada de comum. Existe a brincadeira com o perigo, por assim dizer, deixar no ar que algo pode acontecer para fins de suspense. Roman Polanski é mestre em criar um clima de insegurança.
Nunca parece haver estabilidade. O que acontecerá a seguir, só os alemães sabem, e eles não são os mais dispostos a conversar amigavelmente. Não há garantia de que tudo vai continuar do jeito que está. Alguma ordem pode colocar as pessoas para carregarem tijolos e outra pode realocar todas para um novo alojamento. Ou então algum oficial de mau humor pode fazer um judeu sentir o gosto do couro de sua bota entrando em seus dentes porque sim. Adrien Brody traz a “The Pianist” a postura necessária para complementar a abordagem não sensacionalista da obra, com seu personagem freqüentemente não podendo fazer muito mais do que assistir o que acontece ao seu redor, não por vontade nem por fetiche, e sim por falta de poder para intervir.
Seu sofrimento é real e sentido. Quem buscar nele uma interpretação dramática chamativa, talvez se decepcione ao encontrar por um bom tempo o retrato do homem comum e ordinário, sem nem mesmo uma personalidade chamativa como diferencial. É em momentos específicos que o brilho da performance se manifesta, ou melhor, a partir de um certo ponto, quando começa um processo transformação dolorido demais para ser ignorado. Seja por apresentar um retrato profundo partindo de 1939 até o fim da guerra, pela performance de Adrien Brody, pela direção de Roman Polanski ou por tudo isso funcionar em uníssono, “The Pianist” se mantém como um excelente trabalho merecedor de todos seus prêmios e boa reputação.