A antecipação por esse filme foi considerável. Martin Scorsese é conhecido amplamente por reviver o subgênero de Gângster no cinema com trabalhos que entraram para a história juntamente dos clássicos das décadas anteriores. “Goodfellas” costuma ser um dos primeiros nomes lembrados, um freqüente ocupante das primeiras posições de listas e progenitor de cenas marcantes. Todavia, já faz um bom tempo que o diretor não produz nada do gênero. Embora no formato familiar de ascensão e queda, “The Wolf of Wall Street” não lida exatamente com gângsteres e “Gangs of New York”, apesar do nome, é uma abordagem bem diferente dos italianos de terno e cabelo lambido para trás. Diferenças à parte, ambos serviram como lembretes do estilo e tema pelos quais o diretor se tornou popular. “The Irishman” promete mais que isso, é um retorno de fato à era de ouro. Com algumas diferenças.
Passando da terceira idade, Frank Sheeran (Robert De Niro) gasta a maior parte de seus dias em uma cadeira de rodas, dominado pela artrite que o impede de andar mesmo com muletas. Restam apenas suas memórias das várias décadas trabalhando para Russell Bufalino (Joe Pesci), figura proeminente da máfia italiana da Pensilvânia. Começando como alguém que fazia favores pequenos para os outros, Frank passou a ganhar mais respeito dos outros e se tornou ele mesmo alguém respeitado dentro dos círculos mais internos da família. Eventualmente ele se encontrou ao lado de Jimmy Hoffa (Al Pacino), popular sindicalista, como um elo de confiança entre o homem e a máfia. Isto é, até Hoffa desaparecer sem deixar traços do que aconteceu.
Algo importante para se ter em mente com “The Irishman” é sua duração e orçamento. Ambos são os maiores de toda a carreira de Scorsese, com 157 milhões de dólares investidos em um produto de 3 horas e 29 minutos — um minuto a mais do que seu documentário “George Harrison: Living in the Material World”. Os dois fatores têm tudo a ver com o elenco escolhido. Reunir Al Pacino, Harvey Keitel, Joe Pesci e Robert De Niro sem dúvida não custou barato e, ademais, ir tão longe por um filme de 1h30 não soaria muito sensato. A obra representa mais do que uma adaptação de livro sobre mafiosos ítalo-americanos do Século XX, é um evento cinematográfico por trazer praticamente todos os atores que fizeram história com ou sem Scorsese nas décadas passadas. Num primeiro momento, a duração soa apropriada no mínimo para aproveitar ao máximo essa oportunidade única, mas isso não é um motivo concreto. Faz-se necessário também uma demanda da história para justificar todo esse tempo.
“The Irishman” está no limite da indulgência nesse quesito. Um pouco mais e talvez a impressão mudasse para algo negativo, mais longo do que deveria, cansativo e extenso em demasia. Do jeito como está, não é um caso em que tudo começa e acaba sem que o espectador perceba a passagem do tempo, como alguns filmes longos que se destacam pela fluidez quase sobrenatural. Também não parece estar se arrastando por um quilômetro de lama, aparentando ser ainda mais longo do que é. É perceptível que o longa tem 209 minutos e que agora passou uma hora, faltando ainda outras duas e meia; que então passou mais meia hora e ainda restam duas pela frente. Cada minuto pode ser sentido nem para mais, nem para menos. O lado bom é que existe conteúdo suficiente para preencher todos deles, evitando a opinião de que este trecho é desnecessário ou que aquele prejudica muito o ritmo.
A história de Frank Sheeran começa em mais ou menos 1945, logo após o fim da guerra, e continua até meados dos Anos 90, com o homem nos seus 70 e tantos anos. É muito tempo. E como mafiosos dificilmente ficam parados esperando as horas passar, a quantidade de acontecimentos importantes mais que preenche o filme com a odisséia de um irlandês que passou a fazer parte de uma família mafiosa italiana por conta de sua lealdade. Pode soar parecido com Jimmy Conway de “Goodfellas”, outro americano de origem irlandesa, mas é só isso. “The Irishman” tem tantos elementos parecidos com um Épico de Gângster de Scorsese quanto tem de diferente. A progressão da história passa longe daquilo que era uma característica comum no gênero e acabou se tornando também uma do diretor, o tal arco de ascensão e queda, altos muito altos e baixos muito baixos. Falta a parte em que os personagens nadam em dinheiro, usam notas como papel de parede e queimam cem dólares para acender um charuto, por exemplo, as seqüências mostrando os exageros e os luxos disponíveis para aqueles que vão longe o bastante na carreira e conseguem faturar o bom dinheiro.
A realidade é mais sórdida em “The Irishman”. Talvez os anos tenham trazido um ponto de vista diferente sobre o assunto para Martin Scorsese, hoje com 77 anos, ou quem sabe o material de base do roteiro possua essa qualidade mundana, com personagens que de fato não saíam em carros valendo pequenas fortunas para gastar ainda mais dinheiro em champanhe e charutos. A similaridade com “The Sopranos” é clara: estes não são os mafiosos de elite, sua vida é muito mais banal e comum do que o senso comum sugere. Muitos desses personagens têm muito dinheiro e o próprio Frank coloca as mãos em maços de notas ocasionalmente. Dinheiro não falta e, mesmo assim, a narrativa insere o espectador nos momentos mais cotidianos em casa, festas em família com a filha de Frank demonstrando sua inquietude quando está perto de Russell Buffalino, por exemplo. As evidências estão ali, sugerindo que o olhar sobre os mafiosos não é o mesmo de antes e que é uma escolha deliberada. Se a realidade concorda com isso ou não, é visível como o glamour não é parte da realidade dos personagens aqui.
Isso acarreta a falta do humor encontrado em outros trabalhos do diretor, algo que funcionou muito bem a favor de “The Wolf of Wall Street” na manutenção de um ritmo dinâmico e de uma experiência heterogênea, com truques diferentes, por assim dizer, mantendo a energia em alta. Isso não é dizer que “The Irishman” é um filme absolutamente sério, sem uma piada sequer. Ele tende mais para uma atmosfera sóbria no geral, dependendo mais do carisma de seus personagens e de sua relação diferenciada para criar momentos engraçados para uma audiência que não considera normal discutir assassinato e extorsão. Além do mais, nem sempre há espaço para humor. Sua presença mais ocasional é adequada ao material, mais apoiada nos momentos em que Frank Sheeran entra em ação para fazer seu trabalho não muito agradável.
E é claro, desde o começo se comentou sobre o uso da tecnologia e maquiagem para transformar um elenco que foi jovem na década de 70 e tirar alguns anos de suas costas. De Niro e Pesci têm 76 anos, Pacino está com 79 e Harvey Keitel chegou nos 80. É complicado os colocar para interpretar rapazes de 30 ou 40 anos, mas a mágica é feita. Relativamente. Embora o efeito de rejuvenescimento seja impecável, sem parecer uma aberração digital horrível, existem certas coisas difíceis de mudar. O rosto pode deixar de ter rugas e ser mais liso, porém a idade traz algumas outras coisas como a postura, o jeito de andar, a velocidade de movimento. De Niro nunca chega a convencer que tem 30 anos em certo momento, por exemplo. Às vezes fica evidente que seu condicionamento físico é compatível com sua idade real e conseqüentemente o filme parece ter um elenco mais velho do que deveria, que acompanha homens entre 45 e 80 anos.
É um detalhe. Não seria a primeira vez que Hollywood coloca alguém velho demais em um papel por conta do status de estrela, então ao menos é apropriado que todos compartilhem da mesma condição. O lado bom desse peso negativo é o esforço por trás das atuações ficar evidentemente melhor, uma luta contra o tempo em prol da fidedignidade da performance. Joe Pesci, em especial, se destaca por não ter nada a ver com os homens de pavio curto de “Casino” e “Goodfellas”, ele está calmo como um monge ao longo do filme, escondendo a extensão de sua influência e seu poder por trás de poucas palavras e gestos diminutivos. Tal nível de competência vale para o elenco inteiro, na verdade. O espectador quase deseja que “The Irishman” fosse mais longo para apreciar um pouco mais as performances de papéis menores como o de Bobby Cannavale. Quase. Então ele lembra que já são três horas e meia.