“The Band Wagon” começa com Tony Hunter (Fred Astaire) dentro de um trem. Ele parte da costa oeste em direção a Nova York, cansado de ser um artista esquecido do cinema de canto e dança, uma relíquia do passado, busca renovar sua carreira no teatro com um musical preparado especialmente para ele por um casal de amigos escritores. Risadas, grandes números, diversão! É disso que Tony precisava: uma mudança de cenário, gente nova e um trabalho excitante. A idéia é chamar o grande diretor Jeffrey Cordova (Jack Buchanan) e a maior dançarina do momento, Gabrielle Gerard (Cyd Charisse), para criar uma nova obra prima da Broadway, mas os planos começam a desandar quando as idéias do diretor distorcem o projeto original.
Se a premissa parecer familiar, é porque realmente se baseia na realidade. Os Anos 50 foram os mais frutíferos para o que depois se chamou de musical clássico de Hollywood. Vários dos melhores saíram neste período ou, pelo menos, os mais famosos. Há de se dizer que o gênero vem de muito antes, do final dos Anos 20 até os Anos 30 com alguns trabalhos marcantes da dupla Ginger e Fred, os Anos 40 continuando a inovar e até alcançar uma fórmula seguida por muitas produções até os Anos 50 verem a evolução dessa fórmula nos filmes mais amados da história do gênero. Mas o que isso tem a ver com qualquer coisa? “The Band Wagon” empresta elementos da realidade em sua trama baseada em dois importantes temas: a carreira estagnada de um ator de musical e a decadência do gênero.
É contraditório. A mesma época tão marcante para o gênero também marcou o começo do seu fim. Foi um pico seguido de uma queda íngreme ao longo dos Anos 60 e o número progressivamente menor de produções. Apenas dois anos antes, “An American in Paris” vencera o Oscar de Melhor Filme; cinco anos depois, “Gigi” venceria o mesmo prêmio. Onde está a decadência? Já nessa época alguns musicais começavam a dar menos retorno financeiro para os estúdios. “The Band Wagon” é um deles. Parte de seu custo alto certamente se deve a Fred Astaire no papel principal, então uma estrela já consolidada… desde a década de 30. O ator já havia se aposentado e voltado dela em 1948, quando Gene Kelly quebrou o tornozelo e foi substituído em “Easter Parade“, retomando o ritmo até a MGM encerrar seu contrato de alto custo em 1597. De qualquer forma, ambos ele e o gênero já estavam perdendo pique em 1953. A história usa isso inteligentemente a seu favor ao fazer Astaire praticamente interpretar a si mesmo ao colocá-lo na situação comum de artistas de cinema migrando para o teatro em fim de carreira.
Isso é o que eu chamaria de contextualização excessiva para elogiar um roteiro. E ele é realmente bom, traz em sua essência uma premissa cativante que conquista já em seus paralelos com a realidade e o ar de verossimilidade resultante. Os fãs de hoje não se incomodam nem um pouco de ver Astaire dançando em qualquer oportunidade, porém o público que o viu fazer 30 musicais em 25 anos não devia pensar o mesmo, talvez até estivesse cansado de ver a mesma coisa de novo. “The Band Wagon” usa isso a seu favor e coloca o protagonista numa situação peculiar de tentar se reinventar ou arranjar um novo público para o seu espetáculo de sempre. Eis que entra no projeto um diretor auteur, visionário, cheio de idéias e conceitos mirabolantes. Quem nunca ouviu diretor ser descrito com esses adjetivos antes, que atire a primeira pedra. Ou melhor, quem viu o resultado dos pretensiosos que almejavam essas qualidades, sabe como pode dar muito errado.
Estagnado ou não, de nada posso reclamar de Fred Astaire em “The Band Wagon”. Também não vou dizer que é um de seus trabalhos mais vistosos, pois é menos impressionante que o próprio “Easter Parade” mencionado anteriormente e que o sublime “Swing Time“. Seu sapateado já teve mais energia, com certeza. Já não se vê a cartola nem a bengala e o fraque. Isso é coisa do passado, e o filme tenta deixar isso claro já em seu primeiro quadro, mostrando os itens à venda num leilão e em seguida inserindo o ator em números diferentes daqueles dos Anos 30 e 40. Acontece que Cyd Charisse acaba roubando a cena quando presente, demonstrando conforto no pedestal em que é colocada pela trama, a dançarina fenomenal de muito renome e fama. Felizmente, ela traz Astaire junto para o topo e forma uma dupla que não deve nada à parceria dele com Ginger Rogers. Ambos são grandes dançarinos e mais que provam isso em “Dancing in the Dark”, por exemplo.
Talvez a intenção do coreógrafo e do diretor não fosse quebrar muitas barreiras mesmo, Vincente Minnelli já havia feito isso dois anos antes ao gastar uma pequena fortuna em um balé de 17 minutos, então provavelmente quis ficar mais tranquilo. O que não é ruim. Não compete com os melhores dos melhores do gênero, mas decerto faz mais que o suficiente para se colocar entre os grandes. A produção de Arthur Freed deixa evidente o toque de Midas mais uma vez em 15 números cheios de vida, de criatividade ímpar e até um pouco bizarros como “Triplets”, no qual Fred Astaire, Nanette Fabray e Jack Buchanan interpretam bebês trigêmeos inclinados ao fratricídio. Estranha idéia de entretenimento, que, aliás, possui várias faces. Umas mais comuns e não menos competentes, como “That’s Entertainment!”, e outras bem diferentes em conceito e execução, como “Girl Hunt Ballet”. A primeira se tornou um tipo de lema para a MGM e deu nome para coletâneas lançadas a partir da década de 70; já a segunda inspirou diretamente o famoso clipe de Michael Jackson, “Smooth Criminal”.
Outra ironia dessa obra é que sua trama trata de um diretor que tem a visão de transformar um conceito simples numa releitura de “Fausto” em forma de musical com mil efeitos especiais. Não precisa nem revelar no que isso dá. Parece que não foi alerta o bastante, pois anos depois alguns verdadeiros gênios tiveram idéias como transformar a lenda do Rei Arthur e “Lost Horizon” em musicais. A solução da trama para esse problema acaba sendo reinventar o projeto original de novo, e o resultado, embora muito bom, parece que ainda carece de algo para ser a obra-prima que os personagens afirmam ser. Não deixa de ser um sinal de que a simplicidade bem trabalhada supera a complexidade mal executada.