Houve um tempo em que musicais dominavam Hollywood. Embora esteja presente desde o fim dos Anos 20, o gênero brilhou mesmo do fim dos Anos 40 até o fim dos Anos 50. De fato surgiram vários sucessos na década seguinte, mas foi também nesse período que vários fracasso de crítica e público surgiram. Grandes produções com resultados insatisfatórios enterraram a magnífica combinação de Cinema e Música de modo que até hoje o gênero não recuperou o fôlego. Mais do que parte dessa Era de Ouro, “An American in Paris” é um dos poucos musicais que ganharam o Oscar de Melhor Filme. Em 1952, na 24ª Cerimônia do Oscar, o grande vencedor da noite foi este musical. Os responsáveis por trás de tamanho sucesso? Simples nomes como Gene Kelly, Vincente Minnelli e Arthur Freed. De fato, faz sentido que haja tanta qualidade aqui.
Depois do fim da guerra, Jerry Mulligan (Gene Kelly) é dispensado do exército para seguir seu próprio caminho. Ele escolhe Paris como casa e a pintura como profissão, tudo o que ele sempre quis fazer da vida. Em cafés de esquina e paisagens soberbas, Jerry encontrou a concretização de suas fantasias românticas, mas a realidade mostra-se um pouco menos doce: ser artista não está sendo tão lucrativo quanto ele esperava. A salvação vem na forma de Milo (Nina Foch), uma mulher rica interessada na arte e no artista. Para complicar, o medo do rapaz da relação bagunçar interesses é abalado pela chegada de uma garota irresistível e comprometida com outro homem.
Uma atraente particularidade que costumo buscar num musical é ver como a junção de cinema e música funciona. Em outras palavras, a transição de uma narrativa tradicional para um número musical, na qual é aceitável subir em pianos para sapatear e agarrar gente desavisada para dançar. “The Sound of Music” usa a música como instrumento reconhecido pela narrativa em vez de ser a clássica metáfora para algum elemento da trama — como uma dança representar a falta de noção de tempo de um casal apaixonado. Os personagens realmente estão cantando na história, sem pausar a realidade para entrar na melodia. “All That Jazz” mistura coreografias deste tipo, que fazem parte da história, com outros números do estilo metafórico. De qualquer forma, ambos servem o propósito de contar quem Bob Fosse é. Há outros modos, porém, como “La La Land” e a suave progressão na trilha sonora antes de entrar nos espetáculos. São modos diferentes de fazer a mesma coisa. Não que haja um problema em começar a cantar subitamente, visto em vários filmes da Disney, porém é sempre um detalhe agradável quando está lá.
Quanto a “An American in Paris”, a resposta é fluidez na tonalidade. Cabe a um conjunto da obra que valoriza, principalmente, entonações e a transição entre elas. É a arte de transformar subitamente — e efetivamente — um momento banal numa apresentação por meio da história e seus personagens. Jerry está acostumado a chegar em casa e brincar com as crianças da rua, conversar com elas e até dar chiclete de vez em quando. Dessa vez, ele ensina algumas palavras em inglês: árvore, moça, janela, flor… até chegar nas primeiras palavras da canção “I Got Rhythm”, que envolve um curioso dueto de Gene Kelly com as crianças. Mais do que um inteligente jogo de palavras abrindo portas para a música, é o tipo de coisa que se encaixa perfeitamente na personalidade construída para o protagonista de Kelly. Por trás dele, uma alegre espontaneidade que não deixa palavras ficarem retidas e torna aceitável toda sua peculiaridade. Neste mesmo número, por exemplo, ele imita objetos e personalidades variadas seguindo a mesma idéia de ensinar palavras novas. Parece aceitável na teoria até o ator sair rodando de braços abertos pela rua imitando um avião. Surpreendentemente, não é ridículo. Em parte porque Kelly faz todas suas palhaçadas em meio a complicados sapateados; o resto é por conta da personalidade enérgica. É mais provável pensar que ele é um excêntrico curtindo a vida do que um emissor de vergonha alheia.
Assim como faz parte da natureza dele ser brincalhão, do tipo que cantarolaria na rua sem ligar para o resto do mundo, é igualmente aceitável vê-lo entrar numa canção romântica. Novamente, a fluidez na tonalidade entra em cena a partir da preparação sólida da história. “An American in Paris” traz os personagens de Gene Kelly e Leslie Caron perdidamente apaixonados. A química é evidente e arma o palco para que um número musical seja consequência dos sentimentos em cena. Um encontro dos apaixonados tem tanta energia e romance por trás de si que seria um desperdício não encaixar uma canção ali. Neste ponto, Vincente Minnelli não só acerta no esforço preliminar ao espetáculo, como também varia a fórmula na inclusão de números que não dependem do casal principal. Um deles é a incrível orquestra de um homem só que surge relativamente do nada. Adam Cook (Oscar Levant), pianista amigo de Jerry, está deitado na cama fumando um cigarro até que a câmera entra em seus pensamentos e começa o grande concerto protagonizado por várias versões dele tocando diferentes instrumentos. De todas as coisas, mostra que o talento de Levant está no piano, já que sua atuação não é das melhores.
Algo que começou me incomodando e é corrigido mais tarde é a curta aparição da própria Leslie Caron. Não por sua personagem ser cativante ou bem escrita a ponto de eu querer conhecer mais sobre ela, já que o forte de “An American in Paris” não é seu roteiro. Diria até que é o ponto menos atraente, pois o enredo por vezes cai no problemático otimismo exagerado, tornando-se também um tanto previsível muito antes de acabar. O acerto do roteiro está em saber quando colocar a personagem de Caron em ação. Logo no começo, ela é descrita por Henri Baurel (Georges Guétary) como uma garota fantástica. Para cada adjetivo que ele traz, Adam tira uma conclusão precipitada e é corrigido na sequência: “Então ela é agitada?”, “Não, ela é muito culta!”, “Então ela não deve ser de poucas palavras”, “Não, ela fala bastante!” etc. Junto com cada uma dessas descrições está a própria Leslie Caron demonstrando essas características através da dança: quando é chamada de culta, ela faz acrobacias pela sala, sobre e ao redor dos móveis, sem tirar os olhos de seu livro, por exemplo. Sua versatilidade e precisão são impressionantes. Assim como Kelly, ela faz muito com muito pouco, precisando apenas de seu talento para causar um impacto.
Depois disso, Caron fica um bom tempo sem dançar desta forma. “An American in Paris” brinca com a audiência ao dar só um gostinho dela no começo e de novo apenas muito mais tarde no grande clímax que faz a fama do filme. Muito se comenta sobre o “An American in Paris Ballet”, seja por sua longa duração de 17 minutos, pelos sets cartunescos, o número de dançarinos ou o orçamento de quase meio milhão de dólares — em torno de 4.5 milhões ajustados para inflação. Todos estes aspectos chamam a atenção, inclusive o fato desta grande sequência ser a principal inspiração para o final de “La La Land“, mas minha apreciação veio pela chance de ver Leslie Caron novamente. Só a dança do começo não teria sido o bastante para mim. Com certeza ficaria na vontade de vê-la dançar novamente, uma mulher de pernas fortes e porte atlético igualmente capaz de impressionar como seu companheiro. Felizmente, satisfizeram meu desejo de um jeito que mal poderia imaginar.
Pensando para além da obra, tudo é um pouco menos mágico. No Oscar de 1951, “An American in Paris” levou 6 prêmios para casa. O mesmo número do próprio “La La Land“, exceto pelo fato de ter ganhado o cobiçado Oscar de Melhor Filme. No entanto, acho que trocaram os méritos de lugar neste caso. O musical de Damien Chazelle merecia a vitória, enquanto o de Vincente Minnelli não impressiona tanto quanto o incrível “A Streetcar Named Desire” de Elia Kazan, que estava na competição. Também não impressiona tanto quanto outro trabalho do próprio Gene Kelly no ano seguinte: “Singin’ in the Rain“, que hoje é mais lembrado e amado. Mas tudo bem. Ainda que existam diferenças de qualidade, nenhuma delas é gigante. “An American in Paris” permanece um excelente musical com tudo o que se poderia esperar: canções icônicas, fluidez, ótimos atores, sets de cair o queixo e incríveis números de dança.