Uma das rivalidades mais famosas de Hollywood é ao mesmo tempo diferente da maioria: ela não existe realmente. Foi o público que, ao ver duas figuras distintas se elevando como mestres de sua arte, começou a se perguntar quem era o melhor entre eles. Gene Kelly ou Fred Astaire, qual o melhor dançarino? Toda vez que se fala nos musicais clássicos de Hollywood, os dois nomes são mencionados na grande maioria dos casos. Com razão, pois até hoje não se viu nada como eles, ninguém que conseguiu o mesmo nível de fama e notoriedade por ser tão bom quanto eles. Assim, tal competição segue viva entre os fãs do cinema clássico, sendo que Kelly e Astaire sequer competiram diretamente. Os dois foram amigos a vida toda e até dançaram juntos em algumas ocasiões. “Swing Time” é uma das jóias que representam perfeitamente a razão por trás da reputação inabalável de Astaire, uma de suas grandes conquistas ao lado de Ginger Rogers sob a direção do grande George Stevens.
Lucky Garnett (Fred Astaire) é um apostador por natureza, mas ganha a vida como dançarino em uma companhia que viaja o país se apresentando. Essa vida passa a ter dias contados quando o rapaz conhece uma garota de uma cidade pequena onde se apresentava e decide se casar imediatamente. As coisas dão errado, mas há uma chance de salvar tudo: o pai da moça aceitará o casamento se ele conseguir juntar U$25000 e assim mostrar que merece respeito. Lucky parte para conquistar seu dinheiro em Nova York e acaba conhecendo acidentalmente Penny Carroll (Ginger Rogers), uma instrutora de dança com quem logo cria uma afinidade perigosa para seu futuro casamento.
O que dizer de um filme como “Swing Time”? Tudo está no lugar, funciona de acordo com os planos sem deslizes. É como um brinquedo de dar corda ou um autorama: a partir do momento que se ativa o mecanismo, ele faz aquilo que deveria fazer; o carrinho não sai da pista e faz o trajeto perfeitamente até que se decida que é hora de parar. É assim que acontece quando Fred Astaire e Ginger Rogers estão dançando, embora nem de longe seja tão simples. Também não é o caso do profissional fazendo um ofício complexo parecer fácil, como quando alguns livros ou atuações naturalistas dão essa impressão por serem fáceis de ler ou muito parecidos com atitudes da vida real, respectivamente. Quando os dois estão na tela é automático ficar pasmo e pensar em como alguém consegue dançar daquela forma e se mover com vigor e suavidade, intensidade e graça.
De forma alguma é possível pensar que é fácil transmitir isso e, não bastando, às vezes o fazem em uma mesma coreografia. A dupla saltita constantemente, colocando os pés no chão apenas para satisfazer as demandas da gravidade, rodar nos calcanhares e se lançar ao ar de novo enquanto percorre todo o espaço do cenário. A imagem que vem à mente pensando nisso é um guepardo correndo em seu pico de velocidade: os pés ficam mais tempo fora do chão do que nele, com alguns instantes em que as patas dianteiras ou traseiras impulsionam o movimento e poucos em que todas as quatro tocam o chão juntas. Assistir a “Swing Time” é prestar atenção nos pés. Existem vários motivos para se manter atento à imagem como um todo, mas tudo começa com os pés. São eles os pontos de maior intensidade do quadro, por onde os olhos começam seu trajeto antes de percorrer o resto do quadro e perceber o que há nele.
Uma coreografia é mais do que o movimento dos pés e das pernas, o torso e os braços, principalmente, têm um papel crítico na execução de movimentos em dupla, por exemplo. Ademais, outros elementos técnicos também estão em jogo. A câmera não fica parada no lugar com os dois dançarinos dançando no mesmo lugar ou em uma distância longe o bastante para que eles estejam em quadro independentemente de seu trajeto, ela se move e se comunica com o que acontece à sua frente. Rogers e Astaire estão sempre no melhor lugar que poderiam estar, ocupando um espaço estratégico, por assim dizer, na composição de quadro para que seu movimento sempre seja claro e discernível, o que também acontece com o figurino definido em complemento ao design dos cenários.
Organizando todos estes elementos em coesão, George Stevens. Pouco precisa ser dito a respeito da função de diretor de unificar os esforços de diversos profissional em prol de um objetivo geral, então resta apenas falar de como Stevens cumpre esta mesma tarefa típica com um sucesso atípico. Vários musicais usam o corte como qualquer outra produção comum usaria, usando a técnica para costurar o movimento e manter um fluxo ao longo de diferentes enquadramentos; até mesmo meu favorito, “Singin’ in the Rain” corta vez ou outra no meio dos números para começar um trecho novo da coreografia em um novo ambiente, por exemplo. Bem, “Swing Time” deixa isso de lado. Por que não fazer tudo de uma vez? Há atores e há competência de sobra isso, então tudo é feito aparentemente como um brinquedo de corda: basta rodar a câmera e deixar os profissionais fazer o que quiserem. Quem assiste não sabe que Stevens repetiu algumas tomadas mais de 70 vezes e que os pés de Ginger Rogers sangraram.
Há mais do que isso, claro, e algumas seqüências temáticas demonstram como a inventividade dá um jeito de elevar ainda mais o nível. O número “Bojangles of Harlem” epitomiza as qualidades vistas antes com um aumento notável de complexidade estrutural: mais dançarinos, mais diversidade no figurino, truques visuais e até mesmo uma cena estendida de efeitos especiais ambiciosos para um filme de 1936. Definitivamente não é apenas deixar os atores dançarem, gravar e editar como um longa-metragem. Até porque “Swing Time” traz também uma história de simplicidade charmosa como plano de fundo para o espetáculo, uma que introduz elos quase espontâneos e descomplicados ligando um evento no próximo até a conclusão leve de um conto fácil de acompanhar. Isso sem contar os coadjuvantes e sua participação essencial como alívio cômico de uma obra com momentos engraçados de sobra.
“Swing Time” não vive só de dança, contudo. As canções se mostram também uma parte integral da experiência e mais uma razão para elogiar a dupla de protagonistas, que não deixam a desejar com seu talento vocal. É até difícil de acreditar que nasceu aqui um clássico de Frank Sinatra e outros intérpretes famosos, que também marcou presença até mesmo em outros filmes: “The Way You Look Tonight”. Se o nome não esclarecer imediatamente, basta ouvir um trecho da melodia para ter a impressão automática de que já foi ouvida em algum lugar antes — “Chinatown“, por exemplo. Esta, outras canções e praticamente todos os esforços deste clássico de Fred Astaire e Ginger Rogers são mais que o bastante para colocar este musical entre os melhores do gênero.