A parte estranha de assistir a filmes clássicos é a pressão no ar para gostar de alguns. “Yôjinbô”, por exemplo, está sempre na boca daqueles que o elogiam como um dos melhores da carreira da Akira Kurosawa , uma referência, um destaque dentre suas dezenas de filmes. Como alguém poderia não achar uma obra-prima? Pior ainda, como alguém poderia não gostar? É difícil discutir porque sempre há aquelas pessoas que classificam as coisas entre bom e magnum opus quando se trata de um artista famoso. E então surge o momento da dúvida: “Será que não fui eu que não entendi o filme?” Pode acontecer. Pode ser também que não seja o trabalho incrível de sua reputação, apenas um filme muito bom, como nesse caso.
Um samurai sem mestre percorre o interior do Japão sem destino no final do Século 19. Ele acaba por topar com um vilarejo numa situação muito peculiar. Ninguém nas ruas, as pessoas se escondem e apenas vez ou outra é possível ter um vislumbre de um bando de mal-encarados. O samurai logo fica sabendo de um conflito entre dois clãs na cidade que buscam dominar o território: Seibei e Ushitora. Percebendo que o conflito é ruim e que a vitória de qualquer um dos dois também seria uma má influência no local, o samurai decide agir para livrar a cidade de seus dois problemas de uma vez.
Evito começar falando dos problemas de um filme, a não ser que eles sejam maioria ou muito graves. A idéia é falar das partes boas e deixar o pior para o final, mas nem sempre acontece dessa forma porque cada texto é um texto e cada filme é um filme. Começo falando de algo que me incomodou em “Yôjinbô” em parte porque se apresenta é logo no começo e foi o que me perdeu em outra ocasião que tentei assistir. Os primeiros momentos são de longe os mais confusos. Claro, isso é comum em boa parte dos filmes porque ainda não deu tempo de apresentar contexto, personagens, enredo e cenários. Sinto que aqui é diferente porque a exposição peca por informação demais, enche o espectador de nomes e funções e alianças sem deixar claro como tudo se conecta. Demora um pouco mais para as coisas fazerem sentido e, mesmo assim, não é tudo que encontra seu lugar na narrativa. Há Tokuemon e Tazaemon e o filho de Seibei, quem está do lado de quem e por aí vai.
Fica um pouco difícil captar tudo e entender onde se encaixa. Até parece que atrapalha mais do que acrescenta camadas ao enredo, que no fim das contas trata mesmo do samurai tentando se livrar das duas facções. Pode parece familiar para quem conhece “Por um Punhado de Dólares”: a história é a mesma, só que no Velho Oeste, é um remake não autorizado de “Yôjinbô”. Organizando melhor as informações, um maior foco poderia recair sobre as maquinações do protagonista para colocar um lado contra o outro e fazer a cidade sair como vencedora. Infelizmente, a quantidade de informação deixa a experiência um pouco cansativa em momentos, já que a ação é existe apenas em momentos especiais e nunca dura muito tempo.
Com isso fora do caminho, finalmente posso dizer que todo o resto de “Yôjinbô” é incrível. A fotografia é um trato para olhos que às vezes passam muito tempo sem apreciar imagens provocantes como essas, são muitos filmes apenas bonitos ou nem isso, de visuais esquecíveis. Até poderia ser o maior dos crimes em uma arte baseada na criação de imagens. Acontece frequentemente demais ver remasterizações que revelam detalhes aos montes em imagens que, como um todo, não podem ser classificadas como cinematografia relevante. Há um motivo para jogos como o recente “Ghost of Tsushima” ter um modo em preto e branco chamado “Kurosawa Mode”. Esse filme é o motivo. A experiência essencial de um filme de samurai monocromático se encontra aqui. São imagens bonitas e altamente estilizadas usando o melhor os elementos tradicionais na criação do ambiente fotografado. Há campos infinitos e plantação alta, construções japonesas e gente de kimono caminhando nas ruas de terra batida com katanas embainhadas na cintura.
Mas é claro que só isso não faz imagens impactantes nem bonitas. A direção de Akira Kurosawa é, de longe, o que faz de “Yôjinbô” algo mais do que uma premissa interessante ambientada num cenário clássico, somada cenas de ação e um figurino chamativo. Há um motivo para o protagonista ser mais do que outro dos mais de 15 papéis de Toshirô Mifune com o cineasta. Sua figura desperta a curiosidade. Suas roupas, embora similares o bastante ao resto, também se destacam o suficiente para serem um diferencial. Nasce um tipo de mitologia acompanhando o protagonista, o samurai que parece estar escondendo algo por trás de sua falta de palavras, seja sagacidade ou habilidade com a espada. Isso através de uma direção que respeita aqui, acima de tudo, o ponto de vista de seu personagem principal como o comunicador para a audiência. A história é vista através de seus olhos e ela progride através de suas ações. Kurosawa leva o espectador a entrar em sua história como o samurai observando as movimentações no vilarejo e tramando, explorando o lugar e lutando quando necessário. Essa ilusão da proximidade, da narrativa atrelada a um indivíduo funciona como um artifício muito bem-sucedido de imersão. É mais do que colocar a câmera num lugar bom, é colocá-la no lugar certo para que o objeto de interesse tenha propósito estando onde está.
Queria finalizar com uma comparação com “Por um Punhado de Dólares”, mas não posso porque faz muito tempo que vi o faroeste e lembro de quase nada. Se fosse fazer um palpite, diria que “Yôjinbô” é o superior. Aliás, já é um grande filme só por ter inspirado vários outros remakes ao longo das décadas, assim como outros trabalhos de Akira Kurosawa também fizeram. Suas qualidades podem não fazê-lo competir de igual com outros grandes trabalhos do cinema, existe uma infinidade de outros melhores e obras do próprio Kurosawa que superam essa. Não muda o fato de que ela tem um incontestável ar de clássico: importante, influente e marcante, acima de tudo. Se essa for uma daquelas situações, espero poder apreciar melhor essa obra em outra oportunidade do que pude agora. Seria um pouco triste ver que sua reputação gigante é só uma reputação mesmo.