Quando a seleção do Olhar de Cinema 2017 foi anunciada, “Longo Caminho da Morte” não me interessou minimamente. A premissa não me chamou a atenção inicialmente e eu nunca tinha ouvido falar do filme. Fui mudar de idéia só quando fiquei sabendo que este foi o único longa-metragem de Júlio Calasso e que, até um tempo atrás, era considerado perdido. Pensei que, se não fosse dessa vez, não teriam muitas outras oportunidades para assistir a um filme brasileiro pouco popular. Boa ou ruim, seria uma oportunidade única de conhecer um pouco mais o Cinema do Brasil.
Os Orestes são uma família tradicional da elite cafeeira do Brasil, há três gerações construindo sua fortuna no tempo em que o café e o leite eram as duas moedas mais valiosas do país. No entanto, tudo chega ao fim e o império do café perde força eventualmente. O Coronel Orestes (Othon Bastos) faz parte da fase decadente de sua família. Já não tem o poder que um dia teve e só tem a satisfação insuficiente da nostalgia à disposição. Sabendo melhor do que ninguém que sua vida é uma desgraça, ele assiste de camarote a situação ficar cada vez mais deplorável enquanto lembranças de seu passado o atormentam.
O atrativo de “Longo Caminho da Morte” é também seu maior acerto. Atualmente, é quase um clichê ver que uma produção brasileira fala de favela ou corrupção. O próprio filme de encerramento do Festival, “Baronesa”, ambienta-se nas favelas de Belo Horizonte, então não é um argumento exatamente infundado. Esta obra de Júlio Calasso ignora completamente o clichê e escolhe os anos da República Oligárquica, na qual a famosa Política do Café com Leite aconteceu. Nesse período histórico, a política tinha até menos ética que hoje e podia até ser considerada uma forma de crime organizado. A política brasileira baseava-se num sistema em que os governos estaduais tinham autonomia e poder, até mais que o governo federal. Sendo assim, as duas maiores potências econômicas do país — São Paulo e Minas Gerais, produtores de café e leite — aproveitavam-se do voto não secreto para manipular as eleições e eleger alternadamente um candidato de cada estado. Toda a premissa deste longa começa com este cenário político, especialmente a parte do café. Os Orestes foram grandes nessa época, provavelmente uma das famílias a praticar o Coronelismo e receber apoio financeiro e político em troca. Mas isso foi no passado, em um dia que já passou.
“Longo Caminho da Morte” busca explorar a decadência deste modelo político numa esfera menor, focando numa família que já foi rica e poderosa, mas tem apenas lembranças como resquícios de sua riqueza. Por um lado, a representação do vazio na vida de Orestes é notável e casa perfeitamente com o baixo orçamento da produção. O protagonista é um homem sozinho, literalmente e figurativamente. As pessoas que o acompanham já não importam muito porque o motivo de prazer na sua vida já morreu. A lógica funciona de tal forma que os flashbacks de momentos de fartura não funcionam tão bem por este motivo. É mais fácil acreditar na declínio de uma casa vazia do que numa casa em seu ápice ambientando uma festa para seis pessoas.
Alguns destes flashbacks são óbvios o bastante: reflexos do passado. No entanto, o roteiro deste filme é um tanto confuso e não deixa clara uma linha de raciocínio narrativo por trás da disposição destas sequências. Não senti que elas constroem um significado explorado no presente da história ou que agregam algo ao que está sendo contado. O lado explícito da existência destas cenas é o contraste, que, por si, não é forte o bastantes para evidenciar algum significado importante. Em outras palavras, a queda da Família Orestes não foi aprofundada nessa proposta. As cenas de sucesso não passam um sentimento de saudade ou nostalgia, por exemplo; ao passo que outras sequências simplesmente não fazem sentido algum dentro da história contada. A única coisa que atinge-se com tais escolhas artísticas é a confusão do espectador, que fica sem entender onde e como tais sequências líricas contribuem para a narrativa.
Gosto muito da idéia principal de queda da elite. Muitas boas histórias tratam justamente deste processo de ascensão e queda, especialmente as de Martin Scorsese. Várias de suas obras trazem isso: “Raging Bull“, “The Wolf of Wall Street”, “Goodfellas“… Os exemplos são vários, mas, curiosamente, não foi um trabalho seu que me veio à mente quando vi “Longo Caminho da Morte”: foi “Scarface“, de Brian De Palma. Em algumas ocasiões, senti que estava vendo cenas dos momentos finais da obra-prima de De Palma. Toni Montana com o rosto esbranquiçado de tanta cocaína e pouca noção do que está acontecendo ao seu redor. Depois de um tempo assim, ele percebe repentinamente o caos que se forma ao seu redor e transforma sua inatividade num misto de emoções envolvendo dúvida, surpresa e raiva. Tudo isso tornado é possível pela competência de Al Pacino como ator, que consegue reagir de forma dramaticamente rica aos eventos da história. “Longo Caminho da Morte” tenta seguir uma linha parecida em suas frequentes cenas de Orestes tendo lapsos de loucura quase histérica. Similarmente, é um misto de emoções: raiva, frustração e um tipo de entorpecimento por conta da descrença sobre sua situação. Neste caso, é um pouco diferente porque Othon Bastos não é nenhum Al Pacino e, por consequência, tais cenas não carregam o mesmo poder. Contudo, não é inteiramente culpa dele. O roteiro, se este tiver sido seguido, deixa a desejar nas falas alimentadas ao ator para demonstrar essas crises. Na grande maioria das vezes, o diálogo se resumia ao personagem dizer uma frase algumas vezes e repetir apenas trechos dela na sequência. Algo como como: “O fogo queima e purifica a alma! Queima e purifica a alma! O fogo, Irene, o fogo!”.
Em menor escala, mas também me incomodando, há o estilo de direção de Júlio Calasso. Similar ao que notei em algumas obras de Hector Babenco, notei uma carência de aproximações da ação. É o completo oposto do que diretores como Robert Bresson fazem quando trazem a câmera para perto dos detalhes que importam na cena — como as mãos em “Pickpocket“. Percebi que as composições de cena costumavam limitar-se a planos dos atores em corpo inteiro, a câmera sempre longe dos eventos. Como resultado, Calasso adota uma postura impessoal frente aos eventos apresentados, o que torna difícil para o espectador envolver-se com eles. Apesar das falhas, “Longo Caminho da Morte” tem suas idéias boas. Espero que abra portas para que mais cineastas se interessem por este contexto histórico brasileiro e vejam o que foi feito, o que fazer e o que evitar. Há mais riqueza cultural na história do país que miséria e intrigas politicas.