Muito provavelmente o filme mais citável de todos os tempos, “Scarface” levantou diversas sobrancelhas em seu lançamento, muito mais que o esperado. O assunto dos cubanos nos Estados Unidos era quente na época, uma parte da população latina se viu injuriada pelo teor da produção, chegando a nível de ameaças de morte. A comoção foi tanta que algumas pessoas chegaram a acreditar que o longa havia sido financiado por Fidel Castro para denegrir a imagem Cubana. A recepção foi, no mínimo, energética em ambos os campos dos que amaram e dos que detestaram. O filme foi recusado várias vezes pela censura e quase foi lançado com a pior das classificações indicativas por sua violência explícita, sendo salvo pelo apoio da imprensa e pelo diretor Brian De Palma, conseguiu uma redução para o lançamento. Curiosamente, a crítica especializada, com a maioria de seus membros trabalhando na imprensa, foi a maior repreensora da obra por suas cenas violentas. Foi apenas anos mais tarde que a recepção tomou forma como predominantemente positiva, considerando a obra como um dos pontos mais altos da carreira de De Palma e um dos grandes clássicos do cinema. Talvez até um dos melhores filmes de todos os tempos.
A história se baseia na versão homônima de 1932 dirigida por Howard Hawks e Richard Rosson, “Scarface“. Dessa vez o cenário muda para a costa leste dos Estados Unidos, focando no contexto da imigração cubana em Miami ao invés dos gângsteres de Chicago. Em 1980, Fidel Castro abre o porto de Mariel, liberando passagem para milhares de cubanos migrarem para os Estados Unidos. Tony Montana (Al Pacino) é um desses passageiros, que acaba encontrando o sonho americano nas avenidas ensolaradas de Miami… fortuna, poder e paixão além de seus sonhos mais calorosos. Mas o caminho até o topo não é fácil nem previsível, algo que Tony logo descobre conforme progride de lavador de louça a magnata do tráfico de drogas.
Por se aventurar em muitos gêneros diferentes, “Scarface” pode ser classificado de maneira mais abrangente como um Épico do gênero Gângster: há sequências calorosas características de um filme de ação; dilemas morais originando cenas de conteúdo dramático; um longo trajeto, talvez que possa ser chamado de uma aventura ou odisséia imoral; e patifaria o bastante para encaixar o longa-metragem no gênero Crime. Embora enfiar conteúdo diversificado em quantidade suficiente para preencher quase três horas possa parecer simples o bastante em teoria, administrar bem estes mesmos elementos é outro departamento. Sendo “Scarface” uma das melhores obras da história do cinema, dificilmente se encontraria aqui um mau manuseio desses aspectos. Tratar com carinho esta diversidade apenas faz deste longa outro dos Épicos que se propõe a muito e entregam tanto quanto prometem. Ao invés de diversidade por si, há riqueza numa história que pode ser vista como simples numa primeira vista.
Reflexos disso se encontram nas diversas maneiras como a obra é lembrada: os palavrões constantes, com a palavra “fuck” pronunciada 192 vezes; tiroteios frenéticos com um toque surreal flertando perigosamente com o inaceitável; os fortes temas moralistas envolvendo ambição e desejos capitalistas, a moral em situações inesperadas, entre outras. Isso sem contar de todos os detalhes pontuais, as cenas que às vezes duram poucos segundos e ainda assim se mostram marcantes. Como esquecer da fala mais clássica? “Say hello to my little friend!” permanece como a linha de diálogo quintessencial de uma obra com um arsenal inteiro de falas brilhantes. “Chichi, get the yayo” pode nem fazer sentido fora de contexto e por alguma razão também é recorrente nas conversas sobre “Scarface”. Se não a fala em si, a situação em que ela é entregue faz toda a diferença em deixar uma marca duradoura; caso contrário, várias nem fazem sentido ou podem se compreendidas mal como rasas ou simplesmente ruins.
O que faz “Scarface” exercer tão bem seu papel como um Épico é a maestria de Brian De Palma escolher as ferramentas certas e saber usá-las na hora de preparar o aranjo entre excelentes interpretações, diversidade temática do roteiro e uma narrativa de valor audiovisual forte. Algo que representa bem este belo resultado é como áreas tão distintas funcionam tão bem juntas. Qualquer um que ver este longa-metragem sem muito compromisso terá um filme de gângster de qualidade com cenas de ação enérgicas e movimento o bastante para fazer os 170 minutos de duração passarem voando, algo que vai entreter até os desatentos. Por outro lado, alguém com um olhar mais paciente verá profundidade nos temas abordados, satisfazendo-se para além do material bruto oferecido pela energia dos Anos 80 numa música de discoteca acompanhada de uma linha de cocaína, uma dose de uísque e um tiroteio para completar. Até mesmo quem avaliar elementos mais técnicos como fotografia, direção, som e atuações vai se impressionar igualmente porque cada aspecto recebe a atenção que merece. Sem a raiva incendiada de Al Pacino gritando sozinho numa sala, a fala mais famosa poderia ter saído pela culatra facilmente. Por poder ser apreciado em tantas esferas, esta obra-prima de Brian De Palma se mostra facilmente admirável, fato que também amplia significantemente as chances do longa ser assistido mais vezes sem que se perca a graça.
A qualidade não se resume à maestria de Brian De Palma na direção, muito se deve aos esforços do resto do resto da equipe participante de “Scarface”. O roteiro de Oliver Stone é quase mágico em sua qualidade explícita e simples, direta ao ponto e perfeito nas mãos de Brian De Palma aperfeiçoando esse lado franco de não ter medo de colocar o pé na porta às vezes. Mas se há uma coisa no roteiro que merece destaque é, novamente, a engenhosidade dos diálogos. Além de serem inteligentes por si caracterizam perfeitamente personagens como o próprio Tony Montana, trazendo certo entretenimento à forma como seu funcionamento simples é mostrado, muitas vezes aproveitando o humor para tirar sarro dos seus delírios de grandeza constante. Embora a atuação de Al Pacino como o ambicioso gângster possa ser negativamente vista por uma suposta bidimensionalidade, é justamente neste ponto em que se encontra a genialidade da interpretação. O estilo de Brian De Palma como diretor entra em uma interessante relação simbiótica com Tony Montana. O caráter súbito e direto da direção combina com a natureza impulsiva do personagem, fazendo com que a energia de algumas sequências, explosivas ou violentas, estejam em sintonia com a performance de um homem dominado por emoções fortes. Por trabalhar tão dedicadamente o estudo da moral no mundo do crime, a atuação de Pacino ser tão transparente, deixando claro o que ele quer e o que enfrenta, faz toda a diferença na compreensão dessa dinâmica moralista.
Outros elementos como a trilha sonora servem como acabamento dessa obra-prima chamada “Scarface”. Giorgio Moroder realmente acerta a mão com seus temas característicos dos Anos 80, resgatando o espírito da era dos vícios e o clima tropical da Miami da época em músicas que eram só para preencher o silêncio, por vezes, e acabam criando boas lembranças. Embora seja difícil considerar este um filme realista, suas raízes expressionistas são expostas pelo exagero e ocasional distorção de eventos reais para transmitir um ponto específico ou apenas criar bom entretenimento. “Scarface” causou uma impressão forte em seu lançamento, nem todos gostaram de sua violência e franqueza na representação de ambição, vício e luxúria. Felizmente, o tempo fez justiça e hoje ele é lembrado e homenageado com frequência, um dos chamados clássicos.