Dizem que um curta-metragem funciona como uma piada: não pode ser longo ou prolixo, deve ser sucinto e certeiro em seu objetivo. Faz sentido, pois se a história demorar muito para chegar em seu clímax — o equivalente à punchline — irá perder o interesse de quem está ouvindo. Como se alguém quisesse contar o que fez no sábado e começasse a história pela quarta-feira. Sinto que alguns filmes-mudos se encaixam neste modelo, de certa forma. Provêm de um conceito simples e não o desenvolvem. “Tartufo” é um destes. Ainda que seja curto, com 74 minutos, é uma super-extensão de uma idéia pequena, como uma piada.
Um homem em seus últimos anos de vida encontra-se decepcionado por conta de seu neto decidir se tornar ator. Sem saber direito o que fazer com sua gigantesca herança, ele cogita deixá-la para a governanta que cuida dele e de sua casa. No entanto, ele não conhece ela tão bem quanto acha. A mulher tem seus próprio planos para colocar as mãos na fortuna mais rápido, bem como o neto tem os seus para impedí-la. Ele aparece na casa um dia para mostrar um filme aos dois: a história de Tartufo, um homem que se finge de beato para apossar-se da fortuna de um jovem rapaz.
A sinopse já deixa bem claro qual é o truque deste filme: usar a arte para indiretamente dizer algo. Se o neto chegasse para seu avô acusando a governanta de mil e um crimes, certamente não seria ouvido. Assim, o jovem decide comer pelas beiradas e partir para uma abordagem mais sutil. Primeiro, plantando a idéia da desonestidade da empregada na cabeça do avô; depois retomando-a mais facilmente depois. É um princípio clássico da arte de contar histórias. Fábulas o levam ao pé da letra com sua moral explícita, embora todos os bons contos tenham algo a dizer por trás do lado óbvio de seus eventos. No caso de “Tartufo”, este conceito é levado mais além: é uma história dentro de uma história, a moral de uma usada como um artifício da outra.
Nada contra essa abordagem, pois existem alguns ótimos exemplos dela. Um dos mais clássicos, o livro árabe “Mil e Uma Noites”, traz a história de Scheherazade contando vários outros contos ao sultão. No cinema, “O Manuscrito de Saragoça“, passado no festival do ano passado, segue um caminho parecido; e ainda, “Amadeus” conta com Salieri relembrando seu envolvimento com Mozart. Pode funcionar bem, como nestas três obras citadas e suas abordagens construtivas para a trama. Assim como pode resultar em algo não tão positivo.
Esta segunda parte foi o que notei em “Tartufo”. Neste longa de F.W. Murnau, a história dentro da história é usada literalmente, praticamente esfregada na cara do espectador. De sutileza, não há nada. Pelo contrário, o final insiste em não deixar qualquer sombra de dúvida quanto ao efeito do artifício sobre os personagens. Em um daqueles momentos quando a inteligência do espectador é insultada por uma cena excessivamente expositiva, Murnau conclui seu filme deixando um gosto ruim. A sinopse, mesmo tentando deixá-la sem detalhes excessivos, já resume bem o que o enredo tem para dizer. Numa realidade, o avô é manipulado por uma governanta mal intencionada e o neto tenta impedir que isto aconteça; no filme passado pelo neto, um homem é enganado por um acadêmico mentiroso e a esposa tenta desmascarar a farsa. Não são duas narrativas complementando-se, como o Walter Neff de “Double Indemnity” contando seus crimes numa forma de confissão e redenção, é a mesma história duas vezes.
Antes mesmo do filme do neto acabar, já fica claro como o final se encaminhará. Por este motivo, achei que “Tartufo” se porta como uma piada estendida. Deveria ser pontual, mas chega ao ponto de repetir-se. A grande sacada da obra acaba ficando pequena e pretensiosa. Quando revelam tudo, talvez na esperança de que a audiência olhasse e admirasse a sagacidade de fazer os valores de uma história se encaixarem em outra, não há surpresa alguma. Com isso, não faço uma crítica ao modelo de narrativas dentro de narrativas, mas ao modo como este é usado aqui. Como qualquer coisa no Cinema, esta proposta funciona muito melhor sem a presença da exposição. Uma coisa é usar um flashback, por exemplo, como forma de levar a história para frente; outra é usá-lo para revelar o passado do protagonista e explicar alguma atitude sua no presente. “Tartufo” tem facilmente um dos piores usos da técnica dentre todos os filmes que vi. E, não, não é uma qualidade inerente do Cinema Mudo sendo apedrejada impiedosamente. O problema nada mais é do que um roteiro mal concebido. A própria mostra de Murnau trouxe outras obras mais competentes nesse quesito, mesmo quando o conceito era simples. Não há desculpa.
Dos filmes de Murnau exibidos, “Tartufo” era um dos que menos tinha interesse. E não foi por nenhuma razão em particular relacionada a obra, talvez as outras tenham me chamado mais a atenção — “Sunrise” e “Fausto” definitivamente se incluem entre estas últimas. Ou talvez fosse um sinal de que a proposta nunca teve tanta força assim. No fim das contas, minha baixa empolgação foi de encontro a um dos esforços mais sem sal de F.W. Murnau.