“Der Letzte Mann” é outra daquelas obras com um legado gigante, maior até do que sua reputação como filme bom. Hoje, comenta-se sobre as técnicas introduzidas por F.W. Murnau e a visão que este tentou aplicar na produção. A câmera desacoplada do suporte, a notável ausência de cartões de título na narrativa, a relação da história com a cultura alemã… Certamente achei mais comentários sobre as conquistas técnicas e as pessoas influenciadas por este longa — inclusive Alfred Hitchcock — do que sobre ser um filme mudo imperdível. É uma obra com seus méritos, porém não a colocaria entre outras superiores de Murnau.
O carregador de bagagens (Emil Jannings) de um Hotel tem um trabalho simples, mas se orgulha muito dele. Levantar todas as manhãs e vestir seu uniforme escovado é uma satisfação diária que nunca perde a graça. Seu trabalho sempre foi executado perfeitamente, com exceção de um dia em que ele ficou um pouco mais cansado que o normal. Atento à este deslize pontual, o gerente do hotel tira o homem de sua posição e o coloca em outro emprego menos exigente. Anos de experiência jogados no lixo, uma vida centrada no prazer de ir trabalhar sem rumo. Os efeitos dessa mudança drástica logo são sentidos pelo ex-carregador, que cada vez mais rende-se à decadência.
Assistir tantos filmes mudos nesses últimos dias me leva a discutir questões parecidas a cada análise que escrevo. “Der Letzte Mann”, por exemplo, me faz pensar muito no que era considerado padrão e aceitável naquela época. Assim como cada época tem suas particularidades, o cinema mudo tem suas próprias convenções e técnicas usadas pelos cineastas daquele tempo. A música tinha um papel extremamente significativo, o escasso diálogo era representados por intertítulos, e o comportamento prevalecia sobre outras técnicas de expressão. Hoje, o choque chega a ser tão grande que, muitas vezes, a audiência riu de cenas que não tentavam ser engraçadas. Às vezes era por conta de um efeito especial arcaico; em outras ocasiões por conta desta divergência na linguagem cinematográfica. Ela evoluiu imensuravelmente entre os quase 100 anos de diferença entre os tempos de Buster Keaton e hoje.
Assistindo a “Der Letzte Mann”, frequentemente me peguei pensando nos exageros. Isto é, a interpretação dos atores e como estas parecem exageradas atualmente. A falta de diálogos e som direto exigia uma postura diferente do elenco, que tinha de deixar tudo absolutamente claro através de gestos, ações e expressões. Como era um início de carreira para a sétima arte, sutileza não era um princípio muito seguido. Talvez por medo de não serem claros o bastante, os envolvidos nas produções priorizavam a transmissão da mensagem sem margem para falha. Não arriscavam deixar algum espectador sem entender o que a cena quis transmitir.
“Der Letzte Mann” é um de poucos filmes mudos que não usam praticamente nenhum intertítulo — exceto pelo Epílogo e uma sequência do início. Isso se traduz como uma ausência de diálogos, cartões expositivos — como “Na próxima manhã”— e um esforço extra para comunicar qualquer tema, significado ou evento relevante através das imagens. Por um lado, é uma das inovações de F.W. Murnau, a demonstração da determinação do diretor de extrair o máximo possível de seu meio. O mesmo se vê quando ele desacopla a câmera de seu suporte e a transporta com cabos e até bicicletas, gerando movimentos de câmera inusitados para aquela época. O diretor buscava modernizar o Cinema de sua forma. Infelizmente para ele, essa transformação veio na forma do cinema falado. De qualquer forma, analisando esta obra no contexto de filmes mudos, é um indício de progresso e da visão que Murnau tinha sobre o Cinema como arte.
Na Alemanha, vestir um uniforme era símbolo de respeito e glória, de representar algo maior do que si mesmo — como descobri pesquisando. A história deixa clara a alegria do protagonista em sair de casa e ser apreciado por onde passa. “Lá vem aquele senhor elegante e gentil de novo”, muitos deviam pensar quando ele passava na rua. Perder isso de uma hora para outra tem um efeito catastrófico nele. A grande figura inabalável finalmente cai na desgraça e se junta à parcela medíocre da sociedade. De certa forma, é similar ao contexto histórico da Alemanha na época. Perder a Grande Guerra em 1918 e ter de arcar com termos abusivos do Tratado Versalhes foi um golpe forte ao orgulho alemão. Muitos sentiam que a guerra não havia sido realmente perdida, apenas formalmente encerrada por burocratas. Além de que a situação econômica do país, um dia forte, estava arrasada. Para o povo alemão, este longa pode ter refletido diretamente sentimentos encontrados por eles na época e, assim, ter sido mais impactante. Não dá para ter certeza por conta do desconhecimento das visões políticas de Murnau, mas certamente é um paralelo que atiça a imaginação.
Por outro lado, acredito que as intenções tenham sido melhores que os resultados. “Der Letzte Mann” tem a premissa excelente de mostrar a decadência de uma figura orgulhosa, que já se sentiu respeitada e era bem vista por onde passava. É um assunto relativamente deprimido e pessimista para uma história, uma qualidade responsável pelo Epílogo desta história. Vou evitar detalhes maiores para não estragar o final da história antes desse Epílogo. Digo apenas que é mais uma instância de influência de estúdios e uma drástica inversão de tom, as quais constituem o maior problema de “Der Letzte Mann”. Em dois momentos, principalmente, o exagero do Cinema Mudo me incomodou. Não foi apenas uma tomada com a expressão exagerada de um ator ou alguém balançado os braços para mostrar que está numa discussão. A primeira grande inversão, por exemplo, é um exagero do ator e da direção, a qual concebeu a cena desta forma. O carregador reage à sua demissão ficando em um estado catatônico por quase cinco minutos. Sem falar ou se mexer direito, exageradamente imóvel e alheio ao que fazem com ele. Tiram suas roupas, falam com ele, o levantam do chão e ele fica ali como alguém em coma. Mais tarde, se arrasta pelos corredores do hotel como alguém que precisa continuamente explicitar ao mundo que está em depressão. Através de uma transição um tanto abrupta, o sofrimento torna-se primário num filme que passa a girar em torno deste sentimento.
Este último Festival de Cinema foi uma experiência de conflito de expectativas e tanto. Um dos programadores quase sempre fazia uma introdução para os filmes clássicos em seu sotaque americano comicamente carregado. Os discursos nem sempre eram certeiros de conteúdo, mas foi legal ouví-los porque o rapaz demonstrava paixão pelas obras das quais falava. Além do mais, não dá para dizer que eles estavam errados porque gosto é uma questão subjetiva, embora ache difícil que os Dramas de Murnau sejam todos obras-primas ou suas Comédias as mais eficientes. “Der Letzte Mann” não foi o grande filme descrito por conta de alguns exageros difíceis de relevar. Não obstante, tem suas qualidades e uma importância notável para o Cinema como arte.