Minha memória de “eXistenZ” é de pelo menos uns 20 anos, de algum dia assistindo a isso na TV ou porque talvez eu tenha gostado da capa na locadora e escolhido só por isso. Bastava isso na época para escolher alguns filmes às vezes, até porque eu com certeza não fazia a menor idéia de quem era David Cronenberg. Hoje posso dizer o contrário: sei quem é o diretor, mas acho a capa absolutamente horrenda e o avatar do pior do design gráfico dos Anos 90. A recente explosão de popularidade de computadores e digitalização das ferramentas trouxe algumas coisas boas e outras nem tanto, que mais parecem anomalias de alguém empolgado demais com um brinquedo novo. Basta não deixar a capa influenciar muito o interesse porque a obra no fim entrega muito mais.
A designer de jogos Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh) está para mostrar sua mais nova criação, uma nova revolução para superar sua revolução anterior nos videogames: eXistenZ. O jogo funciona conectando um tipo de cordão umbilical numa entrada na base da espinha do jogador e é controlado usando um console feito de matéria orgânica bizarra, assim o jogador entra em um universo ultrarrealista como em uma psicose induzida e participa dos eventos como se fosse a vida real, sem nenhum tipo de interface entre jogador e jogo. Mas um atentado contra Allegra interrompe a apresentação do jogo e a coloca na companha de Ted Pikul (Jude Law) fugindo de uma conspiração de assassinos que buscam destruir o jogo.
Como uma programadora do Olhar de Cinema falou no começo da sessão, “eXistenZ” faz parte de uma leva de filmes lançados em 1999 que falavam mais ou menos de temas parecidos: a revolução digital, a maior presença e dependência de computadores, os saltos de tecnologia cada vez mais velozes e a virada do milênio. Havia até mesmo o tal “Bug do Milênio” em supostamente muitos computadores não processariam corretamente a mudança de ano e entenderiam que a passagem do ano 99 para 00 seria de 1999 para 1900 em vez de 2000, com risco de sistemas bancários processarem juros negativos e contratos anulados retroativamente, entre outros problemas. Ela mencionou também “The Matrix” e “Strange Days” como outros do mesmo ano e mesmo tema – embora esse último seja de 1995– refletindo ambas uma preocupação com a nova era e um abraçar da revolução.
É engraçado ver como a imaginação correu solta nessa época. Assim como “Back to the Future” achou que em 2015 os carros estariam voando, havia muita expectativa sobre o que o mundo digital traria de novo. Realidade Virtual? Um mundo digital em que as pessoas têm experiências mais reais que a realidade ou, pelo menos, bem extraordinárias porque tudo passa a ser possível. “The Matrix” tratou isso como uma distopia em que a humanidade vivia escravizada numa simulação da realidade por uma raça alienígena, já “eXistenZ” trouxe isso de forma lúdica, na forma de um videogame.
Confesso que às vezes tenho preguiça de obras com percepção de futuro muito exagerada. Tudo bem que temos a tecnologia de tela resistiva — o touch screen — até em microondas, quase tudo está conectado à internet e que até uma caixa de som falante pode controlar uma multidão de aparatos em casa, mas estamos bem longe de muita coisa ainda. Quando vi o pôster de “eXistenZ” e vi que se tratava de videogames, já torci o nariz um pouco por achar que poderia se tratar de alguma fantasia maluca feita por alguém que não entende nada de jogos. O que encontrei, por outro lado, foi uma história que vai tão longe no ultrarrealismo do jogo em questão que na prática continua sendo cinema. Pois é, sem código binário na tela e efeitos especiais horríveis para simular um metaverso em que as pessoas têm um avatar ridículo cheio de breguices, o que é ótimo.
É tudo tão realista que não há nenhuma diferença com o mundo real, então David Cronenberg aproveita e só filma como se não fosse nada de mais. Apenas um pouco de computação gráfica aqui e ali salpicam uma história que usa principalmente efeitos práticos bem típicos dos Anos 90. Além do mais, o diretor encontra saídas inteligentes para justificar o que poderiam ser consideradas más atuações em outro contexto, tal como uma cena em que surge o primeiro sentimento de que há algo errado com a atuação de um personagem dono de uma loja. Depois ainda de seguir o sempre incrível Willem Dafoe, é esquisito ver um sotaque carregado e um comportamento bem atípico, mas tudo acaba sendo explicado como mecânica do jogo e justificado bem mais adiante na história. E tudo participa de uma lógica consistente, algo que se faz especialmente necessário se o assunto é um jogo com regras bem definidas, e ainda há espaço para algumas viradas muito bem-vindas que brincam com a noção de segurança do espectador e tornam o final um ponto alto que eleva “eXistenZ” ainda mais.
Devo admitir que esperava menos. Até mesmo as atuações são um passo a frente do que costuma se ver nas obras de Cronenberg, principalmente as dos Anos 80. “eXistenZ” dá continuidade o alto nível visto em “Crash” e aqui apresenta ótima química entre Jude Law e Jennifer Jason Leigh, dois personagens de personalidades bem diferentes trabalhados numa dinâmica divertida de cabo de guerra. Mais do que apenas boas performances, é mais interessante ainda ver Law como alguém tão introvertido, travado e meio peixe fora d’água perto de uma mulher de calma inabalável e com apelo sexual modesto, mas sempre presente. Não é bem o que se espera de um personagem dele e essa inversão funciona de forma surpreendentemente boa. Apenas mais uma jóia na coroa desse excelente filme.