Eu tinha certeza absoluta que já tinha escrito um texto sobre “Videodrome”. Mais certeza do que isso só a de que eu já tinha assistido, talvez em meados de 2017, pois lembrava de quase tudo quando assisti de novo agora no Olhar de Cinema. Então fui procurar a postagem para colocar o link na página de cobertura do festival e… nada. Não sei por que diabos eu não escrevi sobre ele porque na época era raríssimo eu assistir a qualquer coisa e não escrever, diferente de hoje que sou mais preguiçoso e ocupado e acabo escolhendo apenas alguns para fazer um texto inteiro sobre. Devo ter esquecido, mas aqui estou alguns anos depois.
A história acompanha Max Renn (James Woods), um dos sócios da CIVIC-TV, um canal de televisão que se especializa num tipo diferente de programação: programas eróticos, violentos, fetichistas ou tudo ao mesmo tempo, de preferência. A filosofia do canal é controversa, mas é o que eles tentam oferecer como alternativa a todo o resto da programação engessada da época. Mesmo acostumado com material pesado, Max desenvolve uma obsessão pelo programa e se percebe alterado pela experiência, buscando os criadores para conseguir mais disso que passa a ser para ele o futuro do entretenimento.
É engraçado como “Videodrome” era às vezes comentado como o “filme que tá num pôster enorme perto do banheiro da Pulp” — uma balada curitibana de música boa, para quem não conhece. Talvez não tão engraçado para quem não mora em Curitiba, mas foi curioso quando o Olhar de Cinema anunciou uma retrospectiva de David Cronenberg com a obra na programação. As pessoas finalmente assistiriam à origem do pôster da Pulp. E que bom que isso aconteceu, porque trata-se de uma experiência bastante distinta, mesmo que não necessariamente o melhor do diretor ou algo para entrar em listas de melhores de todos os tempos ou do gênero. Ao mesmo tempo, é uma excelente ilustração do estilo de Cronenberg como diretor e criador de história, de sua visão da sociedade e de como ele a representa visualmente no que é frequentemente chamado de terror corporal.
Não é uma descrição completamente certeira aqui porque o Terror é apenas um dos temperos de uma Ficção Científica. Nada como se o formato ou o desenvolvimento da trama tivessem muito a ver com qualquer tipo de Terror clássico, algumas cenas contém mais violência e um conteúdo gráfico tendendo para o bizarro e elas são fantásticas num sentido que apela especialmente para os gostos de quem gosta de ver aquela morte especialmente marcante no final dos filmes do gênero. “Videodrome” é transitório. Sua idéia é não ficar muito em nenhum campo tempo demais a ponto de se limitar, usando as ferramentas necessárias para fortalecer seu rico universo, que também se beneficia de atuações competentes de James Woods, do elenco principal e até de Debbie Harry, que faz um suposto par romântico interessante e preenche o vazio que Geena Davis deixa em “The Fly“, por exemplo.
O universo em questão envolve temas de alienação, manipulação através da mídia e a mídia como forma de moldar opiniões de forma inconsciente, nesse caso indo bem longe nesse último quesito a ponto de chegar em méritos de percepção de realidade como algo relativo. É como em debates sobre transcendentalismo e experiências psicodélicas, como a consciência ampliada muda as regras do funcionamento mental como se conhece enquanto o efeito está ativo, além do que talvez passe na mente de pacientes esquizofrênicos. Esquecendo padrões de operação mental, como dizer o que é real de fato? Como saber se não há um quê de verdade no discurso da esquizofrenia? Só vivendo para saber mas também quem quer arriscar um caminho sem volta? “Videodrome” cria um terreno cinza entre alucinação e realidade, tentação e satisfação de desejo, tudo isso um ano antes de “A Nightmare on Elm Street” fazer algo parecido entre sonhos e vida real para criar sua história de Terror. E ele é fascinante. Não muito lógico e nem extensamente explicado, mas que provavelmente perderia sua magia caso fosse. E nem precisa, porque a ilusão de coerência está ali, de qualquer forma.
O único problema de “Videodrome”, por assim dizer, é que a mensagem e o conceito geral são bem menos impactantes hoje do que talvez foram 40 anos atrás em seu lançamento. Ou quem sabe já naquele tempo a crítica estabelecida não tenha sido tão original ou pungente como tenta-se imaginar hoje. As críticas da época que li criticaram mais a ilusão narrativa que Cronenberg tentou criar usando elementos como alucinações, alterações da percepção e como a própria realidade se altera a partir do delírio, com as reclamações recaindo sobre quanta suspensão de descrença se faz necessária para aceitar o que é apresentado. Ironicamente, é justamente esse o charme da obra para mim. O problema é que a crítica sobre televisão ser o ópio do povo ou alienação mascarada de entretenimento, um jeito de manipulação em massa usando argumentos falsos como patriotismo e a própria corrupção moral da nação como uma forma de corromper o cidadão ainda mais.
Televisão faz mal, televisão é cultura inútil, televisão é o lixo processado, é a forma de deixar a população burra com programas de baixo nível. Todo mundo já ouviu isso alguma vez, seja com os pais falando que desenhos animados deixam as crianças estúpidas ou a própria arte criticando a cultura da TV ligada o dia inteiro com pessoas queimando as horas sem pensar em nada enquanto algum programa de entretenimento duvidoso passa. A idéia é essa e, bem, por mais que “Videodrome” não faça um trabalho ruim na representação desse mesmo conceito, sendo bastante criativo no uso de alteração de percepção e efeitos especiais, ele também não alcança nada particularmente notável em termos de argumento.
Nada disso impede que o filme seja uma experiência prazerosa. O assunto pode ser um pouco batido já, ao passo que a forma encontrada para falar do assunto demonstra inventividade e uma forma nova de experimentar algo já conhecido. Não é todo dia que se vê corpos se transfigurando em anomalias bizarras para sustentar um argumento. A lógica não é totalmente explicada e está tudo bem, não é como se tudo aqui merecesse uma explicação lógica.