Sim, toda vez vou dizer a mesma coisa: é surpreendente ver uma obra sobre a Primeira Guerra Mundial. O entusiasmo começou anos atrás, quando descobri a existência de “All Quiet on the Western Front” e, nele, um trabalho que exala excelência para além de sua escolha de tema. Devia ser menos fantástico na época, afinal em 1931 ainda faltavam 8 anos até a Segunda Guerra Mundial começar e eventualmente abocanhar os artistas interessados em conflitos humanos e grandes tragédias. Basta pensar no número de trabalhos populares realizados sobre os dois conflitos. A diferença é clara. Então eis que a Grande Guerra fez aniversário — 100 anos do final do armistício entre a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente — e Peter Jackson apresentou “They Shall Not Grow Old” para honrar seu legado de forma inédita: a cores.
Se você assina o Netflix, tem uma ou duas opções de seriados documentais sobre a Segunda Guerra Mundial a cores, ao passo que essa é a primeira vez que a Grande Guerra recebe o mesmo tratamento, com suas imagens revitalizadas para uma revisita. São imagens que, obviamente, não possuem a mesma qualidade de uma gravação moderna ou mesmo de alguns anos depois. Em comparação, a Segunda Guerra já dispunha de equipamento e celulóide mais avançados, o que possibilitou uma cobertura mais fácil e imagens nítidas de longevidade maior. Assim, o trabalho de Peter Jackson e a equipe de restauração se complicou mais do que o comum. Algumas gravações nunca foram tocadas desde o conflito e estavam em estados diversos de conservação dentro do arquivo do Museu Imperial de Guerra. Mais de 100h de conteúdo intocado. Isto é, até “They Shall Not Grow Old”.
“They Shall Not Grow Old” tem muito de fantástico sobre si. Sim, é mais um trabalho que foge da curva na sua escolha de guerra mas também é um que traz imagens nunca vistas antes ou, se foram, com certeza não com esse tratamento cuidadoso em sua restauração, estando mais próximas de imagens borradas, cheias de chuvisco, granulado, artefatos e má conservação atrapalhando a visualização. A tendência atual de remasterizar e restaurar conteúdos antigos para a presente era de alta definição nos domicílios chega aos documentários. Para além dos filmes queridos do passado, registros da história humana são renovados para uma nova geração e também para outros que já conheciam o conflito e nunca tiveram a chance de ver com tantos detalhes.
Sempre tive a sensação de que a Primeira Guerra Mundial era um daqueles eventos históricos de que se ouvia falar muito e só era possível imaginar muita coisa. Ainda não chega no nível de conflitos como a Batalha de Châlons entre o Império Romano e os Hunos, sobre a qual não sabe nem mesmo números exatos de mortos, porém entre 1914 e 1918 o próprio cinema ainda estava engatinhando, primitivo e pouco prático. Vídeos dos conflitos eram poucos, sobrando fotos de figuras importantes como o Arquiduque Francisco Ferdinando, generais e algumas dos campos de batalha, mas nada que fosse tão amplo quanto a divulgação fotojornalística do Vietnã, por exemplo. Muito ficou a cargo da imaginação até que obras como o jogo “Battlefield 1” e filmes como “1917” trouxeram a guerra mais vivamente para as gerações mais jovens. São excelentes representações, incríveis mesmo, que até chegam a oferecer um nível maior de interação e imersão no caso do jogo, com um porém: em “They Shall Not Grow Old” é tudo verdade.
Ou, pelo menos, quase tudo. Claro que há sempre o dedo do diretor no manuseio do material para criar uma narrativa a partir de tanto conteúdo. Sendo uma colorização artificial a partir de um celulóide preto e branco, é impossível afirmar que a fidelidade das cores é total, por exemplo. Outra questão envolve os trechos escolhidos para criar a história: começando ainda no alistamento, passando pelos dias infinitos nas trincheiras imundas até chegar na carnificina e nos últimos calmos momentos de guerra até o armistício ser anunciado. Como saber se o relato do veterano, 50 anos após o fim do evento é confiável? E se for, é possível unir seu pedaço da história com o de outro soldado que talvez nunca tenha visto o primeiro? São questões padrão de documentário, normalmente respondidas por quão eficiente é o produto final, se ele convence ou parece um amontoado de relatos sem coesão.
Tudo vale pela experiência de finalmente poder ver cenas de um conflito centenário da melhor forma disponível. Para além da ficção, o que se vê em “They Shall Not Grow Old” é a realidade aprimorada ao limite do razoável. Além de coloridas, as cenas também são manipuladas a fim de que a taxa de quadros por segundo seja o padrão atual de 24 em vez dos 13 originais. Outras fotografias são animadas para criar um efeito de realidade aumentada junto com efeitos sonoros adicionados e outros artifícios. Nada que corrompa a proposta original; justamente o contrário, é um recurso gráfico a mais para ilustrar um relato que, por exemplo, aborda especificamente como funciona um bombardeio, um projétil que detona no ar e lança fragmentos nos soldados abaixo no campo de batalha.
“They Shall Not Grow Old” é curto em sua versão original de cinema, com 99 minutos, e pode parecer uma versão simplificada de um conflito de 4 anos. Assim, talvez seja mais interessante conferir a versão estendida, com 30 minutos a mais para evitar essa impressão de brevidade. Aqui são as vozes dos soldados que comandam a narrativa. Para eles, que sobreviveram e relembram as experiências, é contar uma história como qualquer outra e aplicar certa casualidade na narrativa, ainda que saibam ressaltar as emoções importantes durante o conflito. Uma pessoa atrás da outra traz seu pedaço da narrativa, conta como era se alimentar de quase nada e ter que agüentar um dia todo a base de chá e um pedaço de pão, desviando de balas e dormindo com os ratos na lama. Certas imagens falam por si, ao passo que toda a parte verbal se transmite exclusivamente pelos relatos dos veteranos, sem narrador. Tudo trabalha para um mesmo fim, uma abordagem pessoal de um evento frequentemente enxergado de cima, considerando batalhas, eventos grandes e congregados de nações inteiras como peças num tabuleiro.