A Luz é para Todos? Eu já achava estranho “To Kill a Mockingbird” ser chamado de “O Sol É para Todos”, mas parece que já havia um precedente, outro filme de Gregory Peck com uma tradução sem muito sentido. “A Luz É para todos” até faz dentro do contexto da história sobre preconceito contra um grupo específico da sociedade, o que ainda não faz dele um bom título ou uma tradução correta. “Gentleman’s Agreement” tem lógica porque, bem, toda a trama gira em torno de um acordo entre o protagonista e seu chefe a respeito de um diferenciado trabalho. Antes tivessem mantido a intenção original, como é melhor na maioria dos casos.
A história de Philip Green (Gregory Peck) começa quando ele se muda para Nova York junto com sua mãe (Anne Revere) e filho. Seu primeiro trabalho aparece a convite do dono de uma revista, escrever um artigo sobre anti-semitismo nos Estados Unidos com liberdade total sobre a abordagem o assunto. Mas a resposta não se manifesta assim tão fácil, as idéias todas parecem batidas e o assunto parece não render novos frutos, isto é, até que surge a idéia de se passar como judeu por algumas semanas e ver como é em primeira mão. Philip Green se torna Phil Greenberg e os poucos que sabem da verdade, guardam segredo.
Lendo algumas opiniões recentes, muitas mencionam como “Gentleman’s Agreement” ainda é bastante relevante hoje em dia ao transpor alguns argumentos para outros contextos. O anti-semitismo, embora longe de extinto — assim como todo preconceito, nunca morre definitivamente — já não é uma questão tão presente quanto era nos Anos 30, durante a ostracização do povo judeu na Europa, e nos Anos 40, quando o preconceito se tornou institucionalizado e virou massacre. Enquanto isso, os Estados Unidos refletiam a situação à sua maneira, como pode ser visto nesse filme de Elia Kazan baseado em um livro best seller do mesmo ano. Para se aplicar hoje, deve-se compreender que as sociedades funcionam diferente e a manifestação do preconceito nem sempre é a mesma em todos os casos. Assim, alguns pontos conservam sua relevância enquanto outros mais específicos se tornam vitrines para o passado.
Por exemplo, há uma cena em que Philip decide visitar um hotel famoso por recusar serviço a judeus, insistindo por explicações lógicas para aquele tratamento preconceituoso. Isso não acontece mais. Ou ao menos é muito incomum de ser ver em pleno 2020. Alguns tipos de preconceito passam a se manifestar de outras formas conforme são diluídos até perderem a força que um dia tiveram. Se o apartheid não existe mais para separar banheiros, bebedouros e lugares no ônibus para negros, o racismo se manifesta de maneiras diferentes, apenas se apresenta com nova maquiagem. Esse é um dos temas de “Gentleman’s Agreement”, como o preconceito se manifesta não só através de ofensas verbais, leis de segregação e agressão física, as manifestações mais óbvias, mas também em atitudes sutis que muitas vezes passam despercebidas por aqueles que as cometem, não tanto por quem as sofre.
Interessante ver como esse argumento é posto, pois, diferente de alguns seguidores dessa mesma idéia, rápidos em apontar comportamentos a torto e direito como demonstrações maquiadas de racismo e fascismo, existem exemplos bastante ilustrativos de como o conceito pode se manifestar de fato. Um deles envolve uma judia e suas práticas negativas contra seu próprio grupo, tentando se defender e argumentar em negação as conseqüências de seus atos contra o grande grupo, tentando não enxergar que alimenta as mesmas coisas de que desgosta. Como pode um negro ser racista, um gay homofóbico ou um judeu anti-semita? “Gentleman’s Agreement” mostra que é possível. E nem isso, na verdade, é novidade atualmente. Eleva-se o argumento essencial de que, embora americanos não tivessem campos de concentração e guetos para judeus, ainda existia algo enraizado e meio escondido contra eles.
Num geral, “Gentleman’s Agreement” funciona. A idéia central é boa. Qual maneira melhor de descobrir algo do que experimentando? A linha de raciocínio do protagonista chega nesse ponto depois de ele ver que nenhum ângulo trazia algo novo sobre o assunto e dava um diferencial em seu trabalho. Escrever do jeito tradicional seria criar um artigo como qualquer outro já feito. Então começa o experimento e os incidentes acontecem, um atrás do outro, como se ao ligar um botão eles se manifestassem. Claro, sendo sensato, parte da função do roteiro é condensar as vivências do personagem para trazer aquilo que é relevante para o enredo, então tais acontecimentos de preconceito deveriam acontecer para existir história.
O único porém é que tudo parece muito certinho, como se o experimento fosse um sucesso absoluto e ninguém, ninguém mesmo, tratasse ele bem, ou apenas normalmente, sabendo que é judeu, é sempre um evento marcante digno das páginas de jornal. Isso dá um aspecto de artificialidade à execução de uma idéia boa, agravado também pelo envolvimento amoroso entre Philip e Kathy Lacey (Dorothy McGuire). Começa rápido e já é um amor para toda a vida — como às vezes acontece na Velha Hollywood — e então a garota complica mais a situação toda conforme o rapaz se envolve mais e mais no experimento. Mais curioso ainda é ver outra relação artificial, dessa vez entre o protagonista e sua mãe. Se pelo menos o romance era convincente, ainda que de começo abrupto, as interações com a mãe todas soam falsas, com Anne Revere parecendo não estar em comunicação de fato com Gregory Peck.
Atuações serem um problema em um filme de Elia Kazan é intrigante, no mínimo. Outra estranheza é ver a falta de coragem de uma Hollywood dirigida por judeus em abordar o assunto de anti-semitismo mais a fundo, sem sequer mencionar o holocausto, nazismo ou aprofundar mesmo nos porquês da sociedade americana ter alguma coisa contra os judeus. Havia se passado apenas dois anos desde o fim da guerra e nunca se menciona o genocídio, como se o anti-semitismo fosse um fenômeno social secundário que o jornalista decide explorar. “Gentleman’s Agreement” ainda é um filme bom, longe do que eu esperava de Elia Kazan, longe de seus melhores e também longe de ser um dos maiores vencedores de Melhor Filme no Oscar.