1917. O penúltimo ano da Grande Guerra. Parece ser um dia relativamente tranqüilo nas trincheiras, sem nenhum ataque programado ou necessidade de se defender de um vindo do inimigo. O Cabo Blake (Dean-Charles Chapman) aproveita esse tempo para tirar um pouco do cansaço das costas com um cochilo, mas logo é acordado para receber novas ordens diretamente de seu general. O Segundo Batalhão quer aproveitar a recente retirada dos alemães para atacar em peso e acabar com eles de uma vez. Ou pelo menos é nisso que seu comandante acredita. Blake se reúne com o Cabo Schofield (George MacKay) para correr contra o tempo e comunicar aos seus parceiros que é uma armadilha para evitar que as vidas de 1600 homens se percam, inclusive de seu irmão.
Toda área possui algum tipo de artifício clichê envolvendo competência. Dribladores costumam chamar a atenção para si no futebol pelas firulas que fazem com os pés e a bola, mesmo que não sejam os jogadores mais funcionais do time. Bateristas que tocam com a pegada diferente também chamam a atenção, apenas menos daqueles que tocam mil notas por segundo. Guitarristas que tocam com o instrumento nas costas, rodam a alça no corpo e a jogam para cima sem perder o ritmo idem. Isso não quer dizer que essas coisas sejam fáceis ou inúteis, apenas não são obrigatórias para uma performance competente. O cinema tem os famosos planos-seqüência nesse posto: com ação e diálogo realizados em uma só longa tomada, que de outra forma seriam representados usando a técnica tradicional de edição. “1917” é o exemplo mais recente disso.
Tudo bem, é uma injustiça resumir o filme a isso. É sua característica mais marcante, sim, e uma conquista técnica que impressiona até mesmo a pessoa que achar a história conveniente e mal escrita, os personagens sem desenvolvimento algum e o tema saturado. Não há como negar que a direção merece mérito por trazer 119 minutos de ação praticamente ininterrupta. “Ah, mas ‘Birdman‘ fez isso em 2015”, “Hitchcock fez isso em 1948”, “São os efeitos especiais que fazem a mágica”. Nenhuma das afirmações está errada. E mais, “Russian Ark” foi filmado em uma tomada inteira de fato em 2002. Nada disso tira o mérito dessas obras. Permanece uma empreitada complicada, que exige muito preparo e perfeição para que funcione adequadamente e contorne as limitações inexistentes nos métodos comuns. Por exemplo, não há como ajustar o tamanho de quadro em uma fração de segundo, introduzir um close ou afastar a câmera e mostrar a imensidão do ambiente onde o personagem se encontra. O trabalho da edição de estabelecer ritmo através do corte deixa de existir. Toda e qualquer alteração da imagem deve ser planejada para que a câmera percorra um caminho predefinido entre os atores, que também devem trocar de posição para acomodar o objeto em movimento.
Por outro lado, existe uma margem para cometer erros usando o método comum. Diretores incompetentes usando as possibilidades sem um critério inteligente, cortando demais quando alguns segundos de imobilidade e silêncio serviriam à narrativa. Ou variando ângulos, aproximando a câmera e estabelecendo mal a geografia da cena ao quebrar o eixo, por exemplo. Os desafios são outros, com certeza, de dificuldade diretamente proporcional ao caráter da ação dos planos-seqüência. “1917” é um filme de Guerra. Difícil ser mais complexo que isso, com um contexto em que não é tão surpreendente uma explosão abrir uma cratera no chão, lançando quem quer que estivesse ao redor pelos ares como bonecos de pano. Isso sem contar a quantidade de pessoas colocadas no mesmo lugar. Especialmente nesse caso, em trincheiras onde o espaço é ainda mais limitado para comportar tanta gente seguindo sua própria agenda. Se não fosse uma comparação injusta, seria este o momento para dizer que “Birdman” e seu cenário de teatro são básicos perto da obra de Sam Mendes.
Em um caso como esse, não se pode esquecer da influência do Design de Produção na confecção de um cenário para comportar toda a coreografia extensivamente ensaiada de elenco e equipe técnica. Não basta apenas um local crível e modificável, com paredes e objetos móveis, pois aqui os cenários externos foram planejados com antecedência, sabendo que o soldado sairia debaixo da árvore e passaria pelas trincheiras, onde outros se sentam, dormem, fumam e conversam, até finalmente chegar na sala de seu comandante. Tudo isso enquanto a câmera segue ou é seguida pelo personagem, portanto são centenas de metros de chão escavados acomodando outras dezenas de figurantes. No entanto, planejamento e logística não soam tão atraentes quanto outros aspectos também pertencentes a essa área. “1917” não é o primeiro filme de Primeira Guerra, por mais que eles não sejam tão comuns, então não é trilhado terreno novo na representação do combate de trincheiras. Todavia, arrisco dizer que essa seja a mais vívida, detalhada e atraente do evento em toda a história do cinema. É então que o design de produção abre suas asas, caso o resto não tivesse cativado ainda.
Há bastante para ser visto nas imagens de “1917”, estética ou praticamente. A fotografia de Roger Deakins entra em jogo para fazer funcionar o palco estabelecido pela produção, levando o espectador pelos lugares onde podem ser vistas paisagens rurais extensas e infinitas, ainda intocadas pela destruição do combate, ou pedaços de civilização já demolidos, sendo apenas uma sombra do que foram antes. Incluindo o combate em si nesse meio, ainda assim não parece nada muito diferente do que já espera em um primeiro momento. É o nível de detalhe, ver a sujeira do uniforme do soldado largado na lama fumando um cigarro, a poeira permeando o ar depois do concreto explodir e até os pedaços de terra e lama nas paredes das trincheiras nitidamente visíveis que destacam a competência do Design de Produção. E é claro, há também os momentos em que a licença artística entra em jogo. Assim como é comum na cinematografia de Deakins, sempre há um momento de grande destaque. As silhuetas brigando num fundo neon em “Skyfall”, a missão noturna em “Sicario”, a cidade abandonada em “Blade Runner 2049” … Aqui se cria um momento destes envolvendo sinalizadores e uma cidade em ruínas. Apenas um momento entre tantos pontos altos, um bom demonstrativo da competência dos visuais, de qualquer forma.
O único problema com “1917” tem a ver com a decisão de gravar tudo em uma tomada só. Como dito antes, é mais fácil estabelecer geografia quando se pode cortar de uma tomada externa da Casa Branca para um estúdio sem que a audiência suspeite de nada. Primeiramente, tem a questão do tempo. Se o espectador está acompanhando a jornada passo por passo, não há como esticar ou condensar o tempo tão facilmente, então se poderia questionar se demora tão pouco assim para percorrer o trajeto da missão. Mas isso até se pode perdoar. Só fica estranho quando, por exemplo, os protagonistas encontram algum aliado ou inimigo no caminho. Em dado momento, esses dois eventos acontecem quase em seqüência, um inimigo ataca sem que os amigos escutem os tiros e façam algo, mesmo estando, em teoria, a menos de 50 metros do local, levando em conta a distância caminhada. Os tiroteios também são mal trabalhados em função da conveniência. Falham em encontrar uma saída melhor que a sorte para explicar algumas cenas.
Sabendo por que o tal plano-seqüência é tão celebrado e comentado universalmente por ser perceptível facilmente para o espectador casual, como fica a questão de ser um artifício de exibicionismo? Se existe função, competência e bom uso da técnica, qual o problema? Bem, ela continua sendo não obrigatória. Basta ver a quantidade esmagadora de obras excelentes que não a usam. “1917” merece aplauso em especial por realizar bem o que um orçamento infinito possibilita usando uma técnica que dificulta tudo, a ambição e escala de um blockbuster usados para coreografar um grande plano-seqüência. Enquanto muito vai se comentar sobre tal feito técnico, que já rendeu a Sam Mendes um Globo de Ouro de Melhor Diretor, não se pode esquecer que isso é apenas um elemento, mesmo que proeminente, de algo feito por tantos outros. Além de ser fluído — adjetivo automaticamente associado — há um filme excelente na essência, conteúdo antes da execução.