Às vezes acontece de um diretor não gostar de um filme seu por razões que nem sempre vão a público. Quando vão, costumam ser debatidas extensivamente pelos fãs com a conversa indo para todos os lados com o gosto individual ditando se as razões dadas pelo diretor fazem sentido. É até comum ver uma situação estereotípica envolvendo um artista entregando um trabalho considerado magnífico pela audiência e terrível pelo próprio artista. “Spartacus” é um dos melhores de Stanley Kubrick e ele o odeia. Orson Welles expressou seu desgosto dizendo que nada em “The Stranger” é seu. Ironicamente, é o único filme de sua carreira que teve sucesso de bilheteria e um dos poucos concluídos dentro do prazo e orçamento.
Depois de deliberar sobre o assunto e chegar em vários becos sem saída, a resposta desesperada das autoridades é deixar um nazista fugir da prisão para ver se ele irá atrás de outros comparsas vivendo escondidos. O alvo dos investigadores é Franz Kindler, um nazista de alto escalão que escapou julgamento e conseguiu apagar todas as evidências a respeito de sua identidade passada, vivendo uma nova vida em um lugar diferente. O Senhor Wilson (Edward G. Robinson) se encarrega da investigação e testa o plano para ver se encontra seu alvo e o faz confessar os crimes.
Gostaria de poder dizer que discordo de Orson Welles e acho seu julgamento de “The Stranger” uma projeção pessoal por não ter conseguido atingir seus próprios objetivos com a obra, esquecendo que o resultado foi bom de qualquer forma. Há quem diga que é um filme subestimado da carreira do cineasta, identificando elementos específicos como reflexos da genialidade do artista facilmente ignorados por estarem muito enraizados no funcionamento básico da obra. Os vários planos longos chamam pouca atenção por não serem tão complexos como a introdução de “Touch of Evil”, por exemplo, embora seja até mais longa que essa última. Outros aplaudem o uso de cenas documentais do Holocausto — a primeira vez em uma obra comercial — como um ponto de ousadia. Nem negligenciáveis, nem fantásticos, tais pontos contribuem, sim, sem chegar a fazer uma grande diferença.
Se for para escolher uma ocasião em que as cenas da guerra fazem a diferença, seria durante “Judgement at Nuremberg”, no qual o conteúdo das imagens é mais chocante, mais bem colocado e dura mais tempo. “The Stranger” se destaca por ser o primeiro apenas, pois os trechos são curtos demais para causarem um impacto. Quanto aos planos longos, provavelmente muitos passam batidos porque sua engenhosidade não chama a atenção como os chamados planos-seqüência e sua ação coreografada em coordenação com os movimentos de câmera. Enfim, tais comparações aparentemente nada têm a dizer sobre o longa em questão, porém são representativos de uma qualidade falha da narrativa como um todo: seu impacto módico. A premissa leva o espectador ao objetivo principal já nos primeiros minutos e nele permanece até o final. Até parece que a história inteira é um grande ato de 1h35.
Qual o problema disso, alguém pode perguntar. Existe um conceito chamado curva dramática imaginado como uma montanha russa para a história não ser monótona nem superficial, nunca apenas subindo ou descendo ou ficando estável. É um processo corrente que varia a intensidade do conflito conforme a história passa por fases diferentes e progride em direção à conclusão da premissa. Normalmente há bastante conteúdo entre um ponto e outro, sub-objetivos e subtramas levando o personagem por desafios e problemas adjuntos, mas não aqui. “The Stranger” começa com o investigador indo atrás das pistas para capturar seu alvo, chegando em uma cidadezinha onde acredita que ele se esconde e assim continua até o final. Parece lógico, pois até aí se poderia dizer que “Taken”, por exemplo, começa com a busca pela filha e só termina quando ele a resgata. A diferença é que neste último existem vários obstáculos no trajeto até ele finalmente chegar no encalço da filha de fato.
“The Stranger” chega bem rápido nesse mesmo ponto. O começo até chega a colocar um alvo diferente seguindo a lógica de meios para um fim, mas já na primeira oportunidade a história entrega o jogo em relação à identidade secreta do alvo e, pior, faz um trabalho medíocre quando mostra as formas como o nazista tenta parecer discreto. A tensão é mínima. As tentativas de esconder sua verdadeira natureza são fracas demais para ninguém ter suspeitado antes, enquanto os atos subseqüentes sugerem até uma certa incoerência a respeito da inexistência de suspeitas até então. A sensação é que tudo já está na mesa desde o começo, restando ao público esperar aquilo que já era previsível. Até mesmo a direção se mostra pouco sutil quando diz que a única informação sobre o alvo é sua paixão por relógios, então dá uma atenção incomum à torre do relógio e praticamente entrega que o clímax será lá.
Para não dizer que a experiência como um todo é uma grande decepção, a história pode se gabar de algum nível de sucesso. Seria um fracasso total se a tensão fosse inexistente em vez de mínima como é. Tirando isso, a parte visual de “The Stranger” relembra o espectador que este é um Noir e não apenas um suspense comum. A presença de Welles na direção se faz notar especialmente no uso do espaço em conjunto com o contraste alto em quadro, as sombras se projetando pelo ambiente como espectros de algo terrível na espreita. Similarmente, quase todos os personagens são cativantes de uma forma ou de outra, seja por jogar damas ou se envolver com o vilão diretamente. Só é uma pena que ele não esteja no mesmo nível. Se uma história é tão boa quanto o vilão, há uma explicação razoável para a competência modesta vista aqui.