“The Hurt Locker” é um daqueles filmes que demorei todo o tempo do mundo para assistir sem razão. Minha única memória sobre ele é do Oscar de 2010, quando muito se falava sobre a grande competição da noite: o filme de guerra dirigido por Kathryn Bigelow ou “Avatar” de James Cameron, seu ex-marido. Era uma batalha entre a maior bilheteria de todos os tempos e também entre um ex-casal, uma que eventualmente viu a vitória ir para Bigelow e sua história sobre um esquadrão antibomba na Guerra do Iraque. Melhor Filme e cinco outros prêmios foram o saldo da noite e foi só agora, 10 anos depois, que estou assistindo. Antes tarde que mais tarde.
A Companhia Delta chega cada vez mais perto do fim de sua rotação, quando os soldados poderão voltar para casa ou escolher ficar para mais um período em atividade. Desativando uma bomba escondida no entulho no meio da rua como de praxe, o grupo segue o procedimento até que o líder tem de intervir diretamente. Os planos dão errado e o soldado perde a vida, trazendo o Sargento William James (Jeremy Renner) para assumir o comando da equipe, o que muda um tanto o ritmo das atividades com seu estilo inconseqüente e destemido.
Para não dizer que não ouvia falar muito de “The Hurt Locker”, era assunto freqüente o merecimento da vitória como Melhor Filme, não só em relação à concorrência porque também se questionava a qualidade como obra individual. Muitos diziam que nem era um bom filme de guerra, quem dirá o melhor do ano na competição com dramas, comédias e ficções científicas. Até se ponde considerar tal questionamento porque “Inglorious Basterds”, o melhor filme de Quentin Tarantino e também de Guerra, estava entre os indicados junto de “Up”, memorável animação da Disney/Pixar, além de outros filmes bem falados como “Precious”, “District 9” e “Avatar” — relativamente. Quanto a este último, muita gente ainda estava estupefata pela rasteira tecnológica em 3D lançada poucos meses antes, assim como muita gente disse que “Avengers: Endgame” era o melhor filme de todos os tempos no calor do momento do final da sessão.
Ainda há a crítica que vem daqueles com argumentos concretos e negligenciáveis. Como é possível duas características contraditórias? Enquanto fazia minha pesquisa habitual para escrever a análise, encontrei um artigo que apontava razões por que “The Hurt Locker” é o pior filme de guerra da história. Naturalmente, fiquei curioso, ignorando o fato de que poderia apenas ser um título tendencioso para atrair cliques. Acontece que não era, a pessoa defendia tal opinião apontando erros, incoerências e dissemelhanças com o protocolo militar real, alegando que as liberdades artísticas tomadas estragavam tudo. Não há como dizer que os pontos estão errados porque, bem, normas militares costumam ser bem rígidas e pouco flexíveis. Elas acabam sendo negligenciáveis porque a idéia aqui não é criar um simulador militar, longe disso.
“The Hurt Locker” está mais para “Call of Duty” ou “Battlefield” do que “America’s Army” e “Operation Flashpoint”; ou seja, mais focado na experiência subjetiva e adaptada da rotina militar do que na simulação de protocolo aos mínimos detalhes. Isso também não é dizer que a abordagem é indulgente ao prazer do entretenimento sensorial e manipula todas as circunstâncias para satisfazer essa demanda. Não há nada como um soldado tomando três tiros e derrubando um pelotão inteiro com uma faca e um coquetel molotov. A proposta busca colocar o espectador no lugar de um soldado fazendo aquele trabalho naquele lugar, exaltar a atmosfera literal e subjetiva de uma zona de guerra num estilo não tão distante, ainda que menos fantasioso, que outra obra de Kathryn Bigelow, “Strange Days”, no qual aparelhos de realidade virtual permitiam reviver momentos passados com imersão total.
Certas características da produção se fazem notar por serem relevantes a essa proposta de realismo subjetivo. “The Hurt Locker” foi gravado na Jordânia e Kuwait, lugares perto o bastante do Iraque para compartilhar do mesmo estilo arquitetônico e urbanístico e criar a ilusão fidedigna de que eles estão ali. E, bem, eles praticamente estão mesmo, porque ficar debaixo de um sol de 49°C usando calça, manga comprida, bota e capacete é tão torturante quanto. A produção até chegou a receber alguns tiros. Tudo isso para poder dizer que foi gravado no próprio local ao invés dos estúdios climatizados e arrumadinhos. Ou não. Algo mais se exalta com tal escolha, um realismo de ver que as ruas cheias de poeira não são fabricadas, que as pessoas observando o exército de longe são dali mesmo e que o desconforto é real. Os ambientes reais também permitiram a cobertura ampla de câmeras, com vários ângulos capturando a mesma De que importa usar os óculos da cor correta, mangas desdobradas e o uniforme do ano exato?
É difícil pensar nestes detalhes quando há momentos de prazeres diferenciados como a introdução. Em outro exemplo de seqüência inicial perfeita, “The Hurt Locker” condensa em alguns minutos as qualidades definitivas da obra, o que esperar dela em um trecho que reúne o melhor da ação, dos cenários, do tom, da direção sublime de Kathryn Bigelow e até da trama. É um momento crítico servindo de gatilho para os eventos do começo. Pensar no vestuário, nos acessórios e na etiqueta é contra-intuitivo quando há soldados correndo e gritando para um iraquiano largar o celular, temendo más intenções no meio de uma operação que acaba numa daquelas imagens marcantes que definem o filme inteiro, tal como o close de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart no aeroporto ou Darth Vader com Luke na plataforma de Bespin.
Como se não fosse o suficiente, há uma mensagem a mais por trás de um roteiro estruturado atipicamente em episódios desconectados diretamente buscando mostrar eventos diversos do período de rotação de um soldado. Em um nível básico, extrai-se diversidade para que o retrato criado não seja limitante a um tipo de situação apenas, o que seria raso. Há uma intenção a mais por trás da experiência imersiva de “The Hurt Locker”, um aspecto relacionado ao trajeto e à personalidade do protagonista de Jeremy Renner. Basta dizer que é similar e bem melhor do que se vê em “American Sniper”.