Recentemente terminei “The Sopranos” e devo dizer que chocado define bem meus sentimentos com relação a sua conclusão. Não por algum fato específico, mas pelo final e como ele foi apresentado. Diferente de grande parte dos trabalhos que se vêem por aí, onde os finais deixam mais do que claro o que aconteceu e limitam os possíveis desenvolvimentos, o final aqui foge desse padrão. Relativamente similar ao que se vê em “2001: Uma Odisseia no Espaço”, a conclusão realmente o deixa, de certa forma, com a faca no pescoço por um bom tempo até a hora que encerra. Dedicarei comentários sobre o final mais adiante no texto, com aviso de spoilers a quem ainda não assistiu.
Tendo fama de ser a pioneira das séries modernas de TV por sua inovação na criação de um trabalho para a televisão, este seriado vai além de seu estado como clássico por manter um alto nível de qualidade e respeito entre espectadores e especialistas. Pode-se dizer tranquilamente que cada expectativa é correspondida, chegando a se exaltar em alguns aspectos que uma execução tão boa não era esperada. “The Sopranos” realmente se sustenta em muito mais do que sua fama de série influenciadora e inovadora.
Este seriado tem uma temática centrada em gangsteres, isso é um fato claro, mas ao mesmo tempo é muito mais do que isso. Enquanto quase todos os acontecimentos giram em volta da vida de crime dos personagens, os envolvidos ganham um papel muito maior em todo o contexto apresentado. Isso pode ser visto em situações cotidianas e familiares, esferas que ganham bastante ênfase; onde os personagens alteram padrões de comportamento e se mostram mudados por toda a amplitude do alcance do estilo de vida criminoso. Toda essa interligação de conceitos e relações consegue ser posta de maneira extremamente sólida em conjunto com os inúmeros arcos, pequenos e grandes, presentes na obra. Arcos que duram por temporadas inteiras ou por apenas dois episódios todos possuem sua relevância e exercem sua influência na trama geral. Todos parecem ser intimamente interligados e dessa forma montam uma grande teia de acontecimentos, que engloba personagens e os inúmeros ideais mostrados. O que torna toda essa ligação ainda mais interessante é a inclusão desses acontecimentos por um propósito maior que um simples entretenimento. Este fato reflete diretamente a genial quebra de paradigmas estabelecidos por outros seriados de TV mais antigos, que tinham um sucesso não tão levado a sério por conta de servirem apenas como canais de diversão descompromissada.
Embora tenha vários arcos importantes ao longo de suas seis temporadas, “The Sopranos” é uma série definitivamente focada nos seus personagens; explorando várias facetas de suas personalidades e a maneira como se relacionam com os elementos paralelos às suas peculiares vidas. Seus personagens principais são todos representados tridimensionalmente, pois ao mesmo tempo em que o impacto de seus votos de fidelidade é mostrado na vida de crime, a série explora também como esse mesmo crime interage com elementos pessoais. Todos se vêem envolvidos e consequentemente impactados por tal estilo de vida, seja a família ou um amigo de fora. Tomando por exemplo os choques constantes apresentados na vida de Christopher (Michael Imperioli), eles mostram claramente como sua vida é composta de conflitos: sonhos e objetivos de vida, relacionamentos afetivos, vícios, temperamento, e lealdade. Todos são mostrados a fim de caracterizar a complexidade da vida de tal personagem e como ele lida com essas variáveis. Aspectos comuns da vida cotidiana, que normalmente passam despercebidos ou são atribuídos pouca atenção, podem também ser notados. Esses eventos, que apesar de não terem tanta relevância para alguns olhares, são os que realmente mostram o nível de detalhe atribuído a estes indivíduos. Até mesmo elementos como maturidade e mudanças da adolescência podem ser notados perfeitamente em personagens como Anthony Jr. (Robert Iler) e Meadow Soprano (Jamie-Lynn Sigler). Ver como uma criança evolui dentro desse ambiente, estando alheia a ele ao mesmo tempo completamente ligada ao mesmo, é apenas um detalhe que torna tudo especialmente interessante.
Apesar de todo o grau de detalhe colocado em cima de outros personagens, o holofote permanece em Tony Soprano (James Gandolfini), o protagonista e anti-herói do seriado. Toda e qualquer complexidade apresentada, por melhor que seja, é consideravelmente menos detalhada que a vista em Tony. Isso não quer dizer que as outras sejam prejudicam por causa da presença dele, pelo contrário. Os conflitos entre suas paixões, desejos, sua moralidade, sua família e seu trabalho são trabalhados minuciosamente, como é mostrado aos poucos em suas consultas com a Dra. Melfi (Lorraine Bracco). As consultas de Tony Soprano com sua terapeuta são uma adição importante no processo de entender o personagem, pois ao passo que a doutora passa a compreender seu paciente, nós espectadores acompanhamos e entendemos o processo em conjunto. Além do processo de compreensão do personagem, ver uma figura tão respeitada quanto Tony Soprano em um consultório psiquiátrico é uma representação inovadora da visão do gângster. Na história do cinema já foi visto o gângster burro, o drogado, o inteligente, o ganancioso, mas nunca um gângster imperfeito como este: um mafioso que tem problemas, um mafioso com condições psicológicas, um ser humano. Mais do que tudo, isso foi um passo grande na representação do bandido perante o as audiências, que passaram a ver um ser humano na figura que costumava ser quase um arquétipo popular.
Mais profundo que a própria psicoterapia é a oportunidade que o espectador tem de acompanhar Soprano durante sua vida diária, alcançando patamares da psique do personagem que a própria terapeuta não tem acesso. Durante esse processo de psicoterapia que perdura por todas as seis temporadas, pode-se notar que todo o processo é uma metáfora que diz que as pessoas não mudam porque não querem, e não porque não é possível. Enquanto Tony aparentemente procura terapia com objetivo de melhorar seu estado, suas intenções são logo descobertas. Ao limitar as informações compartilhadas, Tony distorce suas atitudes, discurso e fatos do passado para justificar seus atos, ao contrário de tentar entendê-los para chegar em uma possível mudança. Ver o personagem fazer esse tipo de coisa já diz muito sobre ele e sua complexidade. O melhor de tudo é poder ver a origem de tais atitudes através de seus familiares, é uma inter-relação bem genial de atuações, se posso dizer.
Apesar de não ser meu seriado de TV favorito, “The Sopranos” certamente é o mais equilibrado de todos em termos de qualidade geral. Todas as temporadas mantêm um alto nível de cuidado e qualidade, tendo pouquíssima diferença entre todas as seis lançadas. De certa forma, este fato em conjunto com a interligação dos inúmeros arcos de história dá a impressão que “The Sopranos” é uma grande e longa temporada. Montar um ranking de temporadas se mostra uma tarefa muito difícil pelo fato de serem todas muito balanceadas. Classificar episódios que se destacam em cada temporada é uma tarefa mais fácil, mas o conjunto da obra de cada temporada permanece bem mais complicado. Com tudo isso em mente, pode-se concluir que “The Sopranos” tem motivos de sobra para ter um lugar merecido na lista dos melhores seriados da história, mesmo que não esteja no topo. Sem dúvida é uma experiência gratificante e diferente, completamente livre de arrependimentos.
Como comentei anteriormente, o final apresentado por David Chase para “The Sopranos” pode ser definido como algo no mínimo algo incomum. Gostaria de neste último trecho deixar minhas impressões pessoais sobre o que absorvi e interpretei das cenas finais do seriado. Aviso que deste ponto em diante colocarei revelações graves sobre o enredo e final do seriado. Se você não viu o último episódio ainda, recomendo que o faça antes de ler o seguinte trecho.
Não achei que Tony Soprano morreu, ainda que digam que os segundos em que a tela fica preta representam o ponto de vista do Tony depois de morto. Acredito que depois de todos os eventos dos últimos episódios, onde muitos personagens morrem, os que sobram ficam sob constante tensão e medo; justamente o que é mostrado na cena final. A sequência mostra Tony escolhendo “Don’t Stop Believing” em uma Jukebox e ao contrário do que acontece nos outros episódios em com música, ela continua a tocar no fundo apesar dos diálogos. Pessoas entram no restaurante junto co a família, que chega aos poucos. Pessoas comuns que entram no restaurante passam a ter uma aura suspeita em cima delas, umas entram acompanhadas enquanto outras jogam olhares de canto. Referências a “O Poderoso Chefão” aparecem, tal como o jovem indo ao banheiro e o aparecimento de laranjas, que indicam que alguém vai morrer na obra de Coppola. Lá fora Meadow demora para estacionar o carro, pequenos trechos de sua baliza são mostrados aos poucos. Os fatos empilham, criam tensão e tudo indica que algo ruim acontecerá com Tony ou com alguém. Inclusive tive a impressão que veria o final de “O Poderoso Chefão III” novamente após ver a Meadow correndo em direção ao restaurante. Após Meadow aparecer correndo e o sino da porta tocar, a tela fica preta por 10 segundos e os créditos rolam. Acredito que a sacada esteja justamente aí. O silêncio e a escuridão não significam morte, toda a cena mostra justamente o que acontece com os infelizes que sobrevivem; enxergam em todos uma possível ameaça e vivem com medo, alertas a tudo. Após toda a tensão crescente, o que acontece com um sujeito psicologicamente instável como Tony? O que vimos acontecer desde o primeiro episódio, um ataque de pânico que resulta em desmaio. Só que dessa vez sentido na pele do próprio Tony, como nunca visto anteriormente.
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Parabéns !! Otimo texto. Concordo com sua opinião.