Olhar para “Donnie Brasco” e ver o nome de Al Pacino envolvido pode despertar um número de reações diferentes. Uns, por exemplo, podem achar que é um grande filme por ter um dos atores que se deu tão bem no gênero e ajudou a consolidá-lo. Outros, considerando o estágio da carreira dele, podem achar que este aproveita a oportunidade para encarar um papel familiar e entregar uma performance pouco inspirada. Em primeiro lugar, ele não é o protagonista aqui, pois este posto fica a cargo de Johnny Depp. Além do mais, vale dizer que a performance de Pacino não só é muito boa, como tem sua própria cota de originalidade. Só isso já faz valer a experiência.
A missão de Joe Pistone (Johnny Depp) parece direta ao ponto: infiltrar-se na máfia italiana de Nova York para juntar informações e acabar com a operação deles. Sob o nome de Donnie Brasco, ele logo se aproxima de Lefty (Al Pacino) e o acompanha fazendo trabalhos aqui e ali até conquistar sua confiança e a do grupo. O trabalho é desgastante e, logo, começa a atrapalhar a vida pessoal de Pistone, que tem mulher e filhos para cuidar. Dedicar-se muito a qualquer um dos lados pode ser fatal, restando a difícil decisão de sacrificar a família de sangue ou a família adquirida. Cabe a Pistone decidir qual lado pesa mais, o que acaba sendo difícil conforme ele se infiltra mais e mais na máfia.
Os problemas não são maioria em “Donnie Brasco”. Mesmo assim, as primeiras coisas que vêm à mente quando penso nele são seus defeitos, principalmente no roteiro e na música. Com isso vêm duas lições na forma do clássico contra-exemplo. A trilha sonora, fazendo questão de mostrar seu mau gosto na maioria esmagadora do tempo, mostra como não usar música num filme. Sem contar as canções licenciadas — os únicos momentos redentores — a trilha é uma coleção das composições mais desimaginativas possíveis. Os sentimentos em cena são meramente refletidos por melodias que sequer chegam a causar uma impressão minimamente notável. Esperar que elas acrescentem intensidade às cenas, então, é pedir demais. Fica especialmente claro quando momentos comuns de êxito são acompanhados por uma trilha desproporcionalmente engrandecedora, como se o sucesso fosse gigante. Basta ouvir um pouco parae ver que uma ponta não liga com a outra. Não soa natural e não funciona.
Já o roteiro é um aspecto curioso. Não é como se ele fosse ruim ou contasse uma história desinteressante, é apenas um tanto sem foco. Ou melhor, ele deixa para focar nas partes menos importantes da trama. Assistindo com amigos, um ponto ressaltado foi justamente esse: se o final da história envolve tal evento, porque é apenas mencionado por cima? Os detalhes sobre o que acontece de fato na conclusão de “Donnie Brasco” não importam muito. Eles são apenas o conteúdo — não necessariamente ruim — de uma estrutura problemática. Já no início, Donnie entra rápido demais na Máfia, instituição que notoriamente não aceita qualquer um em seu círculo. Imagino que não seja exatamente tranquilo para um policial infiltrado de identidade fabricada fazer isso. Mas tudo bem, este é um evento necessário para o enredo existir, em primeiro lugar. E quanto ao resto? Bem, acho esquisito como um dos maiores motivos por trás do envolvimento pessoal do protagonista com a máfia seja um assunto abordado intermitentemente. Até o próprio roteiro parece estar consciente desse desenvolvimento mal concebido quando explicita o motivo mais adiante na trama.
Dito isso, as outras áreas de “Donnie Brasco” se saem um tanto melhor. A história mesmo, apesar de seus problemas de estrutura, não é ruim, longe disso. No geral, ela consegue construir bastante em cima da premissa inicial de um policial infiltrado e imerso demais no próprio trabalho. Não tanto na vida familiar, que frequentemente parte para o melodrama na tentativa de extrair um pouco do espírito Al Pacino de Johnny Depp, fazê-lo sair do sério e perder a cabeça como um italiano típico. Em suma, funciona menos ainda por Depp não ser muito bom em exaltar-se. Isso seria tarefa de Pacino em qualquer outro filme, mas aqui ele é relegado a um papel mais calmo e sereno, como um Michael Corleone ainda mais abatido que no final de “The Godfather III“. É uma versão dele que não subiu na vida e está há 30 anos fazendo os mesmos trabalhos e usando os mesmos ternos até rasgarem, nunca alcançando o nível de elegância que achou que teria. Isso acontece porque talvez ele não exista. Sob a percepção de um vira-lata, sempre há algum lugar mais belo a ser alcançado. Por outro lado, um ponto de vista privilegiado como o do espectador mostra que esse horizonte de ouro não existe. Mais até que “The Sopranos“, “Donnie Brasco” faz um ótimo trabalho em arrastar o mafioso para um mundo real sem glamour algum. Ser o chefe não é ser o Don, ter a mão beijada e viver como um bon vivant. O líder ainda frequenta os mesmos lugares sujos de seus capangas, diferenciando-se deles apenas por título e prepotência. No final do dia, eles ainda fumam os mesmos cigarros.
Está claro nos olhos de Pacino que o cansaço se instalou junto de um desprezo pelo estilo de vida adotado. Como Lefty não pode simplesmente se revoltar contra a máfia ou contrariá-la, a presença de um novato renova a mesmice detestada por ele, de certa forma. Já é o um grande respiro de frescor poder ensinar todos os passos a fim de proporcionar um futuro possivelmente melhor sucedido que o dele. No mínimo, é uma amenização de sua situação miserável, estado que Al Pacino internaliza na alma de seu personagem e transmite muito bem. Facilmente o ponto mais forte do filme, sua interpretação é um ótimo exemplo para aqueles que associam o ator a uma falta de versatilidade, como se ele fosse um bom ator apenas em papéis enérgicos. Não é bem assim. “Danny Collins” traz outra atuação competente sem entrar no padrão de personalidade inflamável, mas já em 1997 o ator mostra outros lados de seu talento. Quanto a Johnny Depp, ele faz um bom trabalho no geral. O excesso de introspecção até atrapalha, suprimindo os momentos mais intensos do personagem e tira a vida destes. Felizmente para ele, seu personagem não precisa ser explosivo com frequência no enfrentamento de sua situação delicada.
“Donnie Brasco” é uma obra de grandes acertos e grandes erros. Binariamente, poderia ser a receita para a mediocridade, mas as conquistas garantem um saldo positivo. Isto me faz pensar sobre como as diretrizes para se gostar de um filme podem ser variáveis. O roteiro costuma ser um aspecto que pesa muito na experiência para mim. Mesmo aquelas obras sem uma história totalmente palpável, que parecem espontâneos e soltos, seguem princípios mínimos para não ser uma experiência vazia. Este é um longa que erra justamente no aspecto elementar da estrutura, mas que não se sai tão mal quanto deveria pelo seu conteúdo ser frequentemente impressionante. Um conjunto da obra imperfeito e tranquilamente aproveitável.