“Faust” é baseado numa antiga lenda alemã também adaptada por Goethe, que escreveu duas peças de teatro sobre o conto clássico. Embora não seja baseada especificamente nas obras de Goethe, o filme de Murnau compartilha diversas semelhanças com ela. Este é, facilmente, o filme que mais me interessava da carreira de F.W. Murnau. Apesar de ter visto antes, não era “Nosferatu” que me chamava a atenção. A história de um homem e seu pacto com o diabo sempre foi mais interessante que a adaptação de “Dracula”. Ficava imaginando como conflitos morais poderiam casar com um pacto profano, algo além do clichê de vender a alma em troca de poder, beleza e dinheiro. Há mais do que isso aqui.
Fausto (Gösta Ekman) é um homem desiludido com a vida. O vilarejo onde ele mora é praguejado por uma doença avassaladora e seus supostamente vastos conhecimentos não ajudaram a curar os doentes. Em outro lugar, Mefisto faz uma aposta com Deus: se o demônio conseguir corromper tudo que há de divino em Fausto, poderá dominar o mundo. O homem, em seu momento de fraqueza, queima todos seus livros e apela para invocar a ajuda de Mefisto. Logo, os dois fazem um acordo. Sem saber, Fausto carrega nos braços o destino do mundo, mas anda de mãos dadas com alguém que não tem seus interesses em mente.
Para um filme mudo, a representação visual das idéias desta trama são um tanto ambiciosas e, até certo ponto, bem executadas. Sem contar as peripécias de Harold Lloyd e Buster Keaton realizando cenas sem dublês e executando outras sem usar miniaturas ou truques visuais, já que essas se enquadram em efeitos práticos, “Faust” apresenta um dos melhores e mais criativos efeitos especiais de toda a era do cinema mudo. A história envolve assuntos de céu e inferno, anjos e demônios, e consegue converter isso em visuais impressionantes. Uma cena que ficou em minha mente e na de várias outras pessoas, como acabei descobrindo, foi a de Mefisto abrindo suas asas em sua envergadura total, pairando sobre o vilarejo e eclipsando todo o horizonte enquanto liberava a fumaça negra que representa a praga sobre a população. É uma composição brilhante para uma época em que muitas encenações ainda eram extremamente teatrais.
Tomando como exemplo outro filme seu, “O Castelo Vogelöd“, há uma evolução absurda da dinâmica simples apresentada lá. Neste longa, fica claro como operam: uma mesma tomada da mansão usada para estabelecer o ambiente antes de um cartão dizendo “Manhã tranquila” e outras novas cenas. Estas, por sua vez, eram compostas de atores alinhados de frente para a câmera, como se estivessem num palco encarando a audiência. “Faust” mergulha na distopia artística do Expressionismo e ignora estes padrões comuns dos primeiros anos da Década de 20. Ele foi lançado em 1926, 4 anos depois de “Nosferatu” e 5 após “O Castelo Vogelöd“. Sombras projetadas exageradamente a ponto de cobrir boa parte da parede e perspectivas incomuns são algumas destas quebras de conceito. Para um filme de Fantasia e Terror, são ferramentas que abrem portas para mil possibilidades nas mãos de um artista criativo. F.W. Murnau pode ser considerado um destes. Visualmente, ele faz um trabalho que usa perfeitamente as características do Expressionismo. Curiosos pelo movimento encontrarão em “Faust” todos os elementos atribuídos a ele em atividade. Dos contrastes gritantes nos tons de cinza — mais tarde incorporados no Noir — aos cenários distópicos, como uma cena em que os telhados são muito mais visíveis que a casa debaixo deles, posicionadas ao longo de uma íngreme colina.
A história foi o que sempre me atraiu a “Faust”. Sempre imaginei essa obra com um potencial imenso para desenvolver as possibilidades de um homem envolvendo-se com o diabo e sofrendo sua influência de tantas formas diferentes. Não apenas no clássico modelo de trocar a posse da alma pelo imediatismo do sucesso em vida, a impulsividade de trocar a eternidade de uma vida espiritual pelo prazer imediato e mundano. O enredo é satisfatório como eu esperava, analisando de forma objetiva. Recheado de contradições, ele representa bem a ambiguidade da moralidade humana. Fausto é um exemplo vivo dessa antítese: ele cai nas graças do diabo para ajudar outros seres humanos. Certamente é uma partida do clichê do homem que vende sua alma por ambição e ganância. O poder de Mefisto é usado para o bem pelo rapaz. A juventude eterna é barganhada para que o protagonista possa voltar a vivenciar o amor. De certa forma, as forças do mal estão mais sendo manipuladas do que manipulando, pois Fausto faz o bem apesar da origem malévola de seus poderes.
No entanto, o que a trama tenta mostrar é justamente o contrário: essa inversão de papéis era para ser um tipo de cabo de guerra. Em outras palavras, nenhum dos dois lados teria completo controle da relação. Fausto não enfrenta Mefisto diretamente e nem deveria, pois seria uma exposição quase ofensiva de tão explícita. No entanto, acredito que Murnau não sei sai tão bem na representação de Mefisto como personagem. Nem me refiro ao seu visual cartunesco e as sobrancelhas exageradas. Estes são fáceis de relevar. Parte das decisões infelizes recaem sobre o ator que o interpreta, Emil Jannings. Mesmo considerando os exageros inerentes da época, senti que sua interpretação sofre mais de uma inadequação do que de um problema de intensidade. Por exemplo, o demônio ocasionalmente se porta como um bobalhão, um gordinho de expressão cômica e uma espada despontando em seu manto de um jeito pouco prático. Em uma sequência, por exemplo, ele se atrapalha todo quando encontra uma moça de meia-idade que se apaixona por ele.
A outra parte dessa má representação está relacionada à própria direção de Murnau. Diferente de inteligente introdução do demônio, na qual é apresentado como uma figura poderosa e quase onipresente, outros trechos são literais demais. Acredito que estes poderiam ter sido mais sutis em sua abordagem, principalmente quando mostram o diabo limitando-se a atitudes que qualquer outro homem poderia fazer. O que o difere deles, então? Se a idéia era realmente mostrar o ato concreto, aí fica questionável a razão de Fausto continuar andando com ele. Manipulação se caracteriza pelo manipulado estar inconsciente das forças sobre si. Se ele não estiver e, mesmo assim, fazer o que lhe é pedido, então se torna chantagem ou decisão própria. Nenhum desses dois últimos exemplos é sugerido em “Faust”, portanto imagino que seja uma falha na execução da primeira idéia mesmo.
Ainda que “Faust” não tenha correspondido minhas expectativas, não acho que ele é pior filme por isso. Pensando pelo lado bom, alimentou meu interesse pelos livros e outras adaptações cinematográficas. Por si, esta famosa obra de F.W. Murnau traz uma das melhores representações visuais de todo o cinema mudo, que demoraram para ser rivalizadas mesmo com o advento do cinema falado. Não é uma abordagem sem falhas, pois pecam na falta de sutileza em certos pontos. Ainda assim, os acertos são dominantes. Vou lembrar mais das asas negras de Mefisto sobre a cidade do que dele fugindo de uma tia apaixonada.