Embora não tenha sido minha intenção inicial, finalizo a sequência de análises de F.W. Murnau com seu longa mais velho ainda existente. De seus 21 filmes, 8 são considerados completamente perdidos — por acidentes ou destruição dos próprios estúdios; 12 estão disponíveis inteiramente; e de “Marizza, genannt die Schmuggler-Madonna” resta apenas um rolo de filme. Curiosamente para mim, que esperava notar uma evolução mais ligada com o passar dos anos, “Der Gang in die Nacht” é melhor que algumas obras de anos posteriores. Pensava que o progresso e qualidade das mais recentes seriam melhor notados, tratando de uma época de constante inovação. Finalmente, provaram que data de lançamento nada tem a ver com ser bom ou não.
O Doutor Eigil Börne (Olaf Fønss) é um reconhecido médico em sua cidade. Seu nome é popular e as pessoas sabem quem ele é por onde vai. É exatamente isso que acontece quando o Doutor visita a ópera. Sabendo da fama do homem, Helene (Erna Morena), uma das dançarinas, dá um jeito de chamar sua atenção e eventualmente conquistá-lo. No entanto, o Doutor era um homem comprometido. Seu envolvimento com a dançarina o leva a terminar seu relacionamento e trocar de vida, tudo com suas próprias consequências aguardando mais adiante.
Por conta de tantas obras perdidas antes de “Der Gang in die Nacht”, não há como saber a verdade. Mas, dadas as circunstâncias, dá para dizer que este é o primeiro filme de Murnau em que o tema de casamento, relacionamento e a inconstância das relações aparece. O mesmo tema que se repetiria em pelo menos 4 outras obras suas: “O Castelo Vogelöd“, “Phantom“, “Faust” e “Sunrise“. O primeiro envolve um homem acusado de assassinar seu irmão, resultando numa viúva fragilizada; o outro traz uma mulher sinceramente interessada num protagonista que busca amor em socialites e interesseiras; o terceiro engloba as relações humanas em geral, mas também tem vidas arruinadas por conta do amor; e, finalmente, a primeira obra americana do diretor foca inteiramente na quebra e reconstrução de um relacionamento. De certa forma, dá para dizer que a carreira toda de Murnau tende a colocar os laços humanos em tensão. Sempre há uma situação, fantástica ou banal, para complicar a vida de seus personagens.
“Der Gang in die Nacht” segue o mesmo caminho através de um envolvimento complicado entre três pessoas: o médico, um pintor cego (Conrad Veidt) e a dançarina. Cada um destes elementos tem uma função simples e pontual, porém essencialmente complementar em seu envolvimento com os outros dois. A dançarina traz sua beleza e capacidade de sedução como sua aptidão principal, o Doutor como o detentor da cura e o Pintor como o doente. Botando cada uma dessas qualidades na mesa, as relações modificam-se e desestabilizam posições supostamente bem estabelecidas. Para evitar maiores detalhes e entregar o jogo, sugiro apenas que se use a imaginação para ponderar como os relacionamentos podem mudar se cada um trouxer a característica principal de sua personalidade ao jogo.
Pelos personagens não serem muito desenvolvidos, não dá para dizer que ocorre uma troca profunda entre eles. Dentro de suas limitações, é curiosa o bastante. Mesmo assim, não deixa de ser a melhor característica de “Der Gang in die Nacht”. É um dos poucos filmes seus que me fizeram sentir realmente envolvido com os personagens — alguns deles, pelo menos. Em várias outros filmes mudos, eu ainda conseguia manter certo distanciamento do elenco e seus atos. Às vezes por culpa do roteiro, outras pelo exagero da atuação. Neste caso, posso dizer que senti raiva e empatia; aprovei, desaprovei, me identifiquei e, mais importante, me senti próximo das decisões tomadas por cada um.
Diferente da maioria dos casos, as atuações conseguiram manter um equilíbrio saudável entre a dramatização típica de filmes mudos e o que é aceitável hoje em dia. Ainda há o exagero, mas sem ficar forçado. Funciona porque as viradas intensas da trama combinam bem com comportamentos super-dramáticos. “Der Gang in die Nacht” é um filme muito emocional, alimentado por paixão em praticamente todos os eventos relevantes da trama. Tudo começa, afinal, com o grande encanto da dançarina pelo médico. É o sentimento forte que a leva a tentar conquistar o doutor de qualquer jeito, mesmo mentindo e fazendo uma farsa para ter desculpas para estar no mesmo lugar que ele. Dessa forma, quando personagens agem na impulsividade emocional, sem saber como controlar o que sentem, fica mais plausível vê-los se jogando no chão quando algo abala suas vidas. Diferente de outras obras em que esses momentos não são regra, mas exceções de um comportamento normal na maior parte do tempo.
“Der Gang in die Nacht” não é um filme que avalio pior por conta da presença de erros atrapalhando grandes acertos. Estes últimos nunca chegam a ser grandiosos, em primeiro lugar, apenas funcionam relativamente bem dentro de circunstâncias ditadas pela profundidade dos personagens. O único defeito realmente notável é o fato das viradas, uma característica forte da obra, serem súbitas demais. Falta um pouco de construção, mesmo que mínima, antes de algumas surgirem. De resto, é uma das poucas ocasiões em que o exagero se encaixa bem com o teor do melodrama da história, além de ser um dos precursores de um tema dominante da carreira de F.W. Murnau.