Depois de décadas filmando em sua terra natal, F.W. Murnau saiu da Alemanha em 1926 e foi para os Estados Unidos. Dessa empreitada, três filmes foram produzidos: “Sunrise”, “City Girl” e “4 Devils” — este último considerado perdido. Não durou muito, pois logo ele saiu em busca de novos horizontes com “Tabu” nas Ilhas Bora-Bora. “Sunrise: A Song of Two Humans” foi seu primeiro trabalho em solo americano e, ao que tudo indica, é o melhor de sua carreira. Foi um dos presentes na primeira cerimônia do Oscar, onde recebeu três estatuetas: Melhor Fotografia, Melhor Atriz para Janet Gaynor e um equivalente a Melhor Filme — o prêmio se dividia em Produção e Conquista Artística na época.
Um homem (George O’Brien) enfrenta o maior conflito moral de sua vida. Suas paixões puxam cada uma de um canto e quase o dilaceram enquanto ele permanece sem certeza de nada. Sua esposa (Janet Gaynor) dedica sua vida a ele e é tão devota quanto poderia ser. Não por submissão, suas atitudes são as mais puras demonstrações de amor. Ele, por outro lado, despreza tudo isso e a deixa de lado por uma mulher da cidade (Margaret Livingston), a qual tenta de toda forma manipulá-lo a livrar-se da esposa.
Parece uma trama totalmente padrão. Um homem em conflito pelos seus desejos contraditórios e sua dificuldade de chegar numa decisão. A mulher mal intencionada e a boa samaritana, ambas destroçando a sanidade mental do protagonista às suas maneiras. Há uma exploração mais aprofundada deste conceito, contudo. Limitar-se ao que é moralmente aceitável e politicamente correto não está nos princípios desta história. Sucintez narrativa nasce com o conceito simples da trama, o desenvolvimento provém do repertório emocional e comportamental de cada personagem. Aproveitar este repertório — as características de cada um e como elas podem impactar a trama — é onde jaz o sucesso de “Sunrise”. A maquiavélica mulher da cidade deixa claro que incitará o conflito mental no homem. Causar sofrimento entra na lista de coisas aceitáveis se fizerem a cabeça dele eventualmente. Por outro lado, a esposa não influencia ativamente, mas, por si, serve como um contraponto forte às atitudes da outra. Mostrar-se imune ao pecado já causa um belo impacto na psique do protagonista e potencializa o conflito por vir.
Uma briga interessante é composta por dois lados equivalentes, que possam fazer frente um para o outro. Se um deles é muito mais fraco ou forte, a narrativa perde força e torna-se previsível. Desequilíbrio não é algo de que posso acusar “Sunrise”. A esposa interpretada por Janet Gaynor me lembrou a Melanie de Olivia de Havilland em “Gone With the Wind“, pura de coração e plenamente altruísta. Ambas servem as funções parecidas de serem pessoas boas sem chegar no ponto de ativistas da boa vontade. Já sua contraparte introduz um dos aspectos mais interessantes deste longa: sua audácia. Não esperava ver num filme mudo, produto de uma sociedade conservadora, a sedução usada abertamente como como método de convencimento. Sem sugestão ou sutileza, é o conceito de confrontar mentes fechadas com pernas abertas em todas as cores. Talvez não me surpreendesse tanto em uma obra como “Greed“, não num romance como esse. Por sorte, é só o começo de uma sequência de outros choques por vir.
O atrito entre dois pólos concorrentes estabelece um incidente incitante tão forte que o resto da história pode ser tratada como as consequências dele. Não querendo dizer que outros filmes não sejam assim, eles são, mas “Sunrise” dá um destaque fortíssimo a este primeiro grande evento propulsor dos outros, até mais que ao clímax. Funciona? Perfeitamente até demais. É neste ponto também que encontro o único defeito deste longa: ir longe demais. Em outras palavras, o evento que desencadeia a bela e tocante transformação do protagonista força um pouco a barra. É preciso de um pouco de suspensão de descrença para acreditar que tudo o que vem a seguir é plausível, fechar os olhos e entrar no mundo romantizado do Cinema.
Um pouco, não muito, pois “Sunrise” se esforça na criação um argumento sólido para rebater o choque do incidente incitante. Dos segundos seguintes à ele, tudo caminha para virar o jogo completamente e transformar uma história que começa deprimida em algo mais alto astral. Tristeza, dúvida e conflito tornam-se a certeza de que o caminho da felicidade é aquele que se percorre. Gradualmente, a experiência introduz valores ausentes no início de uma forma natural e convincente, sem querer reinventar a roda. A primeira parte para uma execução agradável é um elenco fazendo a audiência acreditar que nenhuma mudança é colocada inapropriadamente. A dupla aqui passa por um arco de personagem no sentido mais verdadeiro do termo. Personagens deixam para trás quem eram e os atores acompanham. Nas mãos de um cineastas pior, o resultado seria outro. Tantos acertos constituem a oportunidade perfeita para estragar tudo com diálogo expositivo — um clássico de filmes clichê. Como quando o desenvolvimento transmite o que deveria, mas insistem em colocar alguém falando que o poder do amor muda o mundo. Felizmente, o filme é mudo. Dificilmente alguém vai falar qualquer coisa, muito menos jogar a obra no lixo dessa forma.
Se as descrições do site do Olhar de Cinema nem sempre acertam em falar de filmes, pelo menos chegaram bem perto em dizer que “Sunrise” é a obra-prima de F.W. Murnau. Não concordo que seja uma obra prima do cinema ou mesmo meu filme mudo preferido, porém acho que chego perto o bastante por considerá-lo o melhor do diretor entre as obras a que assisti. Tudo começa num baixo astral como preparação para um estrondo, o acontecimento gigante que alavanca o resto da história e dá sentido a ela. Depois segue-se uma metamorfose orgânica e natural como uma noite que deixa de ser por uma nova alvorada; agradável como a aurora de um dia esplendoroso de verão.