Uma das características mais atraentes de Paul Thomas Anderson é a variedade de suas histórias. Em “Inherent Vice“, a audiência tem a chance de enxergar através dos olhos de um detetive hippie maconheiro; enquanto “There Will Be Blood” traz uma história de ambição e ideais controversos na América do Século 19. Quanto a “Boogie Nights”, nada menos que a indústria pornográfica dos Anos 70 é dissecada do casting ao pós-filmagem. O cinema falando de cinema, dessa vez com uma grande diferença de propósito, conteúdo e qualidade. Grandes atores interpretam bem outro tipo de atores pagos para atuar mal. Funciona curiosamente bem para uma equação tão esquisita.
A extravagância dos Anos 70 vai além das discotecas. Nessa época, a indústria de filmes pornográficos também está a todo o vapor. Entre os novos talentos que surgem, Eddie Adams (Mark Whalberg) embarca numa oportunidade incomparável quando se junta ao maior diretor do ramo: Jack Horner (Burt Reynolds). De João Ninguém a Celebridade, de Eddie Adams a Dirk Diggler. O rapaz pega carona no crescimento astronômico do pornô e muda completamente de vida. Ouvir reclamações dos outros, nunca mais; dias regados a sexo, bajulação e tranquilidade compõem sua nova rotina. Entretanto, até mesmo essa vida boa corre o risco de chegar ao fim eventualmente.
Muitos críticos, inclusive eu, costumam caracterizar e dividir filmes em certas categorias. Duas, para ser mais exato. Lembro de várias vezes que chamei uma obra de estudo de personagem ou falei que era focada em trama. Um claro exemplo do primeiro seria “Her“, ao passo que “Donnie Darko” se encaixa no segundo grupo. Não há crime nenhum em seguir qualquer caminho, visto que ambos são bons filmes, mas não há como negar que é um mérito maior combinar os acertos destes dois mundos em uma obra só. “Boogie Nights” pode se gabar desta glória ao trazer personagens bem desenvolvidos num enredo não exatamente complexo, porém muito envolvente. Além do mais, a atmosfera inconfundível da Era das Discotecas traz um brilho especial ao filme todo. Quem gosta de hits como “Sunny” com um Gin Tônica ao alcance e gente bonita à vista estará muito bem servido.
Arrisco dizer que me senti muito mais imerso e envolvido nesta experiência do que em “Saturday Night Fever“. Sendo o filme mais popular de discoteca, esperava que ele fosse um pouco melhor. Tudo bem, os defeitos não têm nada a ver com John Travolta dominando as pistas, mas nem estes bons momentos compensam outros erros crassos. Nem estes bons momentos se equiparam aos Anos 70 apresentados em “Boogie Nights”. Tendo um foco mais amplo que o que se passa nas discotecas, é ainda mais surpreendente que esta obra seja melhor na representação da época. Não tenho dúvidas que seja pelo fato das extravagâncias de época serem melhor trabalhadas em outros contextos. A história começa dentro de uma casa noturna, mas não se delonga lá. Os personagens logo estão mergulhando de cabeça em piscinas e de virilha em outras pessoas. Curtir o estilo da vida da época significa mais do que vestir um terno vermelho com camisa desabotoada, é adotar a excentricidade como estilo de vida.
Grande parte disso vem do contexto explorado: celebridades. Não importa de onde vem a fama e o dinheiro, Dirk Diggler ainda é uma estrela. Ele bebe, come e transa como um astro do rock. Curte sua riqueza como um. A diferença entre eles é como ganham a vida: um toca música, o outro transa em frente às câmeras. “Boogie Nights” nunca sugere que exista algo exageradamente oposto nos momentos de curtição. É só nos detalhes específicos que a situação fica menos similar e se caracteriza mais notavelmente. Nestes momentos icônicos, quando uma colega de trabalho agarra o garoto com quem tem uma relação materna, a identidade ímpar do filme se exalta. Não é mais o padrão de diversão daqueles com dinheiro, mas um mundo com tantas peculiaridades quanto possível.
A melhor parte é que nada é apresentado como exposição ou ostentação audiovisual. Felizmente, “Boogie Nights” não é uma masturbação estilística. Viver momentos de glória tem significado para as duas facetas da obra: a indústria pornográfica e os personagens que vivem nela. Faz todo o sentido, afinal elas caminham e desenvolvem-se intimamente. Esta á uma história tanto da indústria quanto dos atores, a ascensão e queda das ambições de gente que cresceu na vida, sonhava com mais e termina numa posição inesperada. Apesar das peculiaridades e do humor envolvido numa aventura polvilhada a cocaína, ainda há uma história para estruturar a situação. Isso evita que este filme seja um apanhado desleixado de cenas engraçadas e curiosas. Assim, não se desperdiçam atuações boas de Julianne Moore e Burt Reynolds, ambos completamente devotos à seus personagens. Seus papéis são simples o bastante – diretor e atriz – porém nem isso impede que se veja um ar de sonhador nele e uma mãe amável nela. É fácil acreditar no personagem de Reynolds quando ele diz que pretende transformar a pornografia em arte. E daí que o pornô foi progressivamente banalizado? O efeito de uma interpretação competente faz a audiência esquecer da realidade e acreditar em sonhos absurdos.
Mesmo os personagens menores ganham seus próprios cinco minutos de fama. Ao menos uma cena surge para que características ocasionalmente caricatas resultem numa construção de mundo mais eficiente. Papéis secundários não se perdem em sua qualidade coadjuvante: o roteiro garante uma posição relevante e a direção de Paul Thomas Anderson orienta as interpretações para os melhores resultados. “Boogie Nights” é um filme que não desaponta de forma alguma. Não deixa o estilo e a estética prevalecerem, integrando ambos na estrutura da história de uma forma funcional. Sim, talvez o mesmo possa ser dito de “Inherent Vice“, mas aqui essa proposta funciona. Os Anos 70 não estão ali para roubar a cena de vez em quando, eles definem o tom da história e caracterizam o contexto da trama. É uma proposta que luta em vários fronts e vence a guerra, no final das contas.