3. Twin Peaks e a Cidade de Interior
Quando se fala em obras complexas como “Alan Wake”, “Twin Peaks” e “Deadly Premonition” é difícil apontar as influências especificamente. Não porque os jogos têm poucas, na verdade eles tem várias, só que elas são tão sutis e bem integradas à trama que destacá-las pode parecer pretensioso da minha parte. É como eu dizer que Alan Wake narrar a própria história saiu do Noir ou até mesmo de “Beleza Americana“. Pode até ser que a influência seja real, mas qualquer palpite não passaria de suposição pela técnica estar também em muitas outras obras.
Considerando que as fontes são várias, faz sentido dissecar “Alan Wake” da parte externa para os detalhes menores. A maior delas com certeza é “Twin Peaks”, seriado de televisão de 1990 encabeçado por David Lynch e Mark Frost. Sua história acompanha um agente do FBI e sua investigação do assassinato misterioso de uma jovem garota. Misturando elementos de surrealismo, sátira, suspense e terror, o seriado ainda expande seu escopo ao analisar os demônios interiores do protagonista e dos habitantes da cidade. Embora tenha acabado em 1991, em sua segunda temporada, dois filmes foram lançados nos anos seguintes. O retorno de “Twin Peaks” nas telinhas estava programado para 2016, mas foi adiado para o primeiro semestre de 2017 e trará vários atores do original reprisando seus papéis. Já “Alan Wake” conta a história de um escritor sofrendo de bloqueio criativo que tira férias numa cidade de interior, mas tem sua esposa sequestrada quando encontra um grande conflito entre escuridão e luz à todo vapor.
Antes do formato virar moda, o jogo já se dividia em episódios, tal como um seriado de televisão. São oito no total —contando com os DLCs— que funcionam exatamente como se espera: se jogados em sequência, não há nenhuma quebra de ritmo; ao mesmo tempo que, se jogado ao longo de várias sentadas, o jogador poderá recapitular a história no começo de cada episódio. E no final, sempre há um gancho para o que está por vir. Até mesmo o costume de colocar músicas famosas no final de cada episódio dá as caras, exatamente como muitos seriados fazem nos créditos finais.
Mas “Alan Wake” vai além de um formato extravagante. Sua semelhança com séries de televisão está também em outros aspectos do jogo. O plano de fundo, por sua vez, é quase completamente baseado em “Twin Peaks”: uma pequena cidade madeireira no interior de Washington, característica por estar próxima a um grande rio e esconder um grande mistério. Ambas as histórias apresentam um protagonista forasteiro que chega na cidade e encontra um mistério em suas mãos. Na série o mistério é a morte de Laura Palmer, no jogo é o desaparecimento súbito de Alice Wake. Visualmente as duas são praticamente irmãs, em grande parte por cidades de interior serem um tanto semelhantes entre si. Mesmo assim, restaurantes e lugares menores compartilharem o mesmo design não deixam de ser referências — um restaurante do jogo tem a placa e seu design geral quase retirados diretamente do seriado. Até mesmo locais mais importantes são claramente influenciados por “Twin Peaks”: o alojamento de Cauldron Lake e o Great Northern Hotel são ambos grandes hotéis de madeira localizados no topo de uma colina e com vista para um lago.
Indo ainda mais longe na parte da televisão, “Alan Wake” tem um programa de televisão dentro do universo do jogo. Sim, um seriado em um jogo que se porta como um seriado. Este programa, chamado “Night Springs”, é exibido em vários momentos da história e se baseia fortemente no clássico “Twilight Zone”. São várias histórias bizarras e misteriosas apresentadas em preto e branco por um narrador no estilo de Rod Serling. Saindo um pouco da televisão e indo para o lado do cinema, o jogo introduz um inimigo curioso: uma revoada de corvos que ataca o protagonista de forma organizada. Familiar? É exatamente a idéia de “Os Passáros” de Alfred Hitchcock. A referência fala por si, mas só pra ter certeza, um dos personagens do jogo menciona que vários pardais invadiram pela chaminé, como no filme.
É aqui que as águas se dividem. Se por um lado “Alan Wake” se prende um pouco mais a identidade visual do clássico seriado, outro jogo vai mais fundo e captura o espírito da obra de David Lynch. Por limitações gráficas, as semelhanças visuais acabam sendo menos visíveis. Exceto pelo fato da cidade ser madeireira, muitas possíveis referências se perdem em visuais genéricos.
“Deadly Premonition” se destaca mais em outro aspecto. Ele segue a premissa de “Twin Peaks” de uma forma ainda mais parecida que “Alan Wake” e, mais do que isso, reproduz o clima de bizarrices com toques de fantasia e surrealidade. Desenvolvido pela Rising Star Games, o jogo acompanha um Agente do FBI que chega numa cidade pequena para investigar o assassinato de uma mulher. As circunstâncias são estranhas, rodeadas pelo sobrenatural e pelo mistério. Há mais do que um simples homicídio ali. E mais do que isso, uma das características definitivas de Twin Peaks é seu elenco de personagens… característicos. O protagonista, por exemplo, já dá uma boa idéia do que é ser excêntrico, começando por seu nome: Francis York Morgan. Tanto ele como o Agente Cooper de Twin Peaks têm uma obsessão por uma xícara de café preto, bom e forte. No jogo, isto vai um pouco além, pois o protagonista tem um jeito especial de falar com seu próprio café. Ambos possuem um tipo de amigo imaginário também; um personagem com quem conversam o tempo todo, mas nunca aparece em pessoa. Além de terem um tipo de santuário mental onde organizam seus pensamentos melhor.
Já outros personagens são tão únicos que muitos beiram uma caricatura, nem um pouco diferente do seriado. Numa mesma cidade encontramos a louca que fala com objetos inanimados; no jogo a Pot Lady, no seriado a Log Lady. Um policial esforçado e desengonçado que não consegue esconder seu lado delicado nem mesmo no trabalho. E claro, a vítima. Laura Palmer e Anna Graham são duas garotas loiras, bonitas e queridas na cidade toda. Trabalhavam numa lanchonete tradicional e chocaram todos com suas mortes. No desenrolar dos eventos algumas mudanças críticas surgem entre as duas e mudam um pouco o que parecia ser tão igual, mas isso não invalida as semelhanças notadas.
“Alan Wake” e “Deadly Premonition” deixam algo bem claro: “Twin Peaks” é um seriado realmente único para oferecer tanta inspiração. Bizarro, característico, surreal e misterioso. Uma pessoa poderia usar esses adjetivos para descrever qualquer uma das obras citadas aqui e não estar errada. Existem diferenças, obviamente. Enquanto “Alan Wake” aborda a surrealidade de uma forma muito mais literal, com monstros de verdade, “Deadly Premonition” aborda o conceito de um jeito mais metafórico enquanto, por outro lado, peca um pouco mais na parte visual para deixar “Alan Wake” entregar uma atmosfera mais detalhada. As semelhanças são várias e muitas não foram citadas, o que não impede que alguém bata o olho nos jogos e veja de onde eles se inspiraram.