Eis que “Joker” foi lançado em 2019 e muito bem avaliado, além de premiado com dois Oscars para a performance de Joaquin Phoenix e para a trilha sonora. Considerando os outros esforços da DC na construção de um universo cinematográfico, pouco se esperava de uma história de origem do Coringa que se leva a sério e se porta como um filme dramático, sem preocupação com ligações com os quadrinhos e outras produções do cinema. Mesmo assim, ele deu certo e até certo demais; certo o suficiente para que Todd Philips, o diretor, começasse a ter idéias sobre uma possível continuação, o que nunca soou bem para meus ouvidos. Parecia mais um caso de querer capturar raio numa garrafa duas vezes, e “Joker: Folie à Deux” não consegue.
A história continua com Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) preso no Asilo Arkham, seguindo sua rotina de dormir, tomar medicação, passar um tempo no pátio e fumar. Todos os dias a mesma coisa, com seus dias de fama e glória sendo apenas um eco do passado que continua a projetar sua sombra na sua vida. O assassinato de Murray Franklin em rede nacional e a revolta nas ruas criou uma legião de fãs do Coringa que protestam pela sua liberdade e deu início a um circo de mídia com sua figura no centro, com livros e até filmes inspirados nos eventos. Mas tudo isso continua no passado e sua vida agora é o tédio detrás das grades. Isto é, até que outra paciente do Arkham entra em sua vida e cria uma nova perspectiva de futuro para o deprimido Arthur.
“Joker: Folie à Deux” foi uma decepção. Quando ele foi anunciado, meu primeiro sentimento não foi dos mais positivos e, na verdade, parecia uma má idéia. Conforme mais informações foram saindo, como a participação de Lady Gaga e o fato de ser um musical, minhas impressões foram ficando mais nubladas e já não sabia mais o que esperar até que achei que seria excelente ou muito ruim. E, bem, o resultado não foi exatamente a segunda opção, embora seja tão medíocre e falho que esteja mais perto de ser um fracasso do que um sucesso, sem dúvidas. As aspirações foram para todos os lados e o material bruto para a construção do enredo acabou por se mostrar insuficiente.
O lado ruim disso é a probabilidade de que se desagradem ambos os que gostam do primeiro filme e os que não gostam e talvez apreciariam algo diferente e novo. Não há como defender um roteiro que parece ter história para apenas 45 minutos e se estende por mais de 1 hora e meia além disso. É essa a impressão passada por “Joker: Folie à Deux”: não se vai a muitos lugares. O final do anterior e o trailer do segundo sugeriram que o Coringa sairia da prisão em algum momento para talvez mostrar qual era esse delírio a dois sugerido no título, com todas as cenas mostradas de duetos, shows e anarquia generalizada. Ou ao menos é o que parecia natural para mim. Talvez não entrar na exata rotina dos quadrinhos de fazer o Coringa fugir de Blackgate ou do Asilo Arkham de uma forma ou de outra, porém criar algum tipo de cenário mais interessante que ver Arthur Fleck derrotado, deprimido e abatido na cadeia até encontrar o amor e sentido para sua vida. Mas não, além de tudo Todd Philips quis incluir um toque generoso de drama de tribunal em sua história. Sim, o julgamento do Coringa, de todas as pessoas.
Quanto a Lady Gaga interpretando Arlequina, é difícil. Grande parte do chamariz dessa continuação seria a adição da personagem, que desde sua concepção é uma parceira do Coringa insana à seu próprio modo, uma psicóloga que acaba se apaixonando por seu paciente e entrando para o crime junto com ele. Agora, não quero ser um purista e exigir que tudo seja igual aos quadrinhos de ponta a ponta. Eu poderia reclamar de como alteraram o nome de Harleen Quinzel para Harleen Quinn, que não é nem original nem o alterego Harley Quinn. É uma mudança desnecessária e meio burra, e tudo bem, ainda é pouco perto de como introduzem a personagem na trama. É exatamente a mesma cena do trailer, exceto que não funciona tão bem quanto nele. No filme, é apenas idiótico como sua apresentação é resumida a um gesto tosco e forçado. Pior ainda é o sentimento de que era para ela ser um tipo de co-protagonista ou uma coadjuvante de muita relevância e, mesmo assim, parece ter pouquíssimo impacto. Sua performance não é ruim nem excelente, razoavelmente convence como a Arlequina sem precisar apelar para imitar a performance de Margot Robbie, por exemplo, e é só isso. Não há muito mais a ser dito além de que, assim como o resto filme, ela frustra expectativas e falha em conquistar qualquer tipo de destaque.
Isto é, exceto pelo fato de ela ser cantora e de “Joker: Folie à Deux” ter esse delírio de também ser um musical além de drama de tribunal, continuação e exploração da psique humana a partir de um ponto de vista doente ou criminoso, com uma pincelada em temas como brutalidade policial, mal tratamento de prisioneiros no sistema penal e de criminalização da psicopatologia. No quesito musical, é claro que Lady Gaga pareceria mais alinhada: falhando em trazer uma boa versão da Arlequina, por que não uma Arlequina cantora? E, claro, por que não transformar o Coringa num cantor também? Adoro musicais e alguns dos meus filmes favoritos de todos os tempos são do gênero, o que não consigo digerir é quão preguiçosamente o gênero é transposto aqui. Performances decentes não se mostram suficientes para justificar ou, ao menos, entreter o suficiente para que sejam bem aproveitadas. Dizer que o Coringa tinha aspirações de ser uma estrela, de ser famoso e de estar no show business não soa suficientemente convincente para apresentar o personagem sair em canto várias vezes durante o filme. Há uma boa diferença entre delírios de grandeza e convencer que alguém poderia só começar a cantar. A única impressão forte é que tudo isso foi um grande artifício para desviar atenção e preencher espaço.
Para não dizer que “Joker: Folie à Deux” é um completo desastre, há acertos pontuais. O conceito musical é falho ao mesmo tempo que as performances variam entre decentes e legais, por exemplo. Não funciona bem considerando o grande todo enquanto tem mais valor isoladamente. O mesmo pode ser dito do drama de tribunal, que também parece uma grande enrolação num macrocosmo e tem cenas interessantes ao longo de seu desenvolvimento. Até mesmo as cenas da prisão têm seu valor, várias delas, inclusive. Elas só não funcionam juntas na construção de uma grande história. E há a parte menos chamativa: tecnicamente, a ilustração visual de todos esses diversificados cenários, a direção de cena de Phillips e a performance de Joaquin Phoenix permanecem como pontos altos da experiência. Esta última, em especial, é o ponto alto da experiência. Não há dúvidas quanto a isso.
“Joker: Folie à Deux” é só mais um exemplo de como continuações nem sempre são uma boa idéia, ou melhor, um reforço do estereótipo de que elas falham em capturar a surpresa apresentada no primeiro e apenas tentam repetir os mesmos truques sem o mesmo sucesso. Eu até tinha expectativas para algo decente aqui, imaginando que talvez continuar a história seria trabalhá-la de uma forma menos óbvia e tradicional, talvez explorando a insanidade desenfreada de uma dupla de psicóticos e tentando algo de fato fora da caixa usando o musical como ferramenta para diversificar e desconstruir a narrativa ao invés de ser uma muleta. Falta história e a progressão se arrasta, estendendo o que poderia ter sido um filme bem mais curto a uma duração de mais de duas horas preenchidas com enrolação. Se os trailers costumam ser criticados por normalmente não fazerem favores nenhum ao filme, nesse caso eles chegam a vender melhor a obra do que ela de fato é.