“Live and Let Die” foi um dos primeiros filmes de James Bond que vi depois de adulto. Lembro que na época em que fiquei empolgado para assistir à série inteira, tinha feito um plano relativamente elaborado para não seguir o caminho óbvio e ver tudo rapidamente pelo streaming. Um primo mais velho iria para os Estados Unidos e aproveitei para pedir para ele trazer o Bond 50, o novo boxset em Blu Ray com todos os filmes até “Quantum of Solace” e um espaço para “Skyfall“. O plano era me manter empolgado até meu primo chegar e ficar ouvindo uma coletânea recém lançada com todos os temas e um disco com faixas extras das trilhas sonoras. Não me aguentei e acabei vendo “Live and Let Die” e “Octopussy” antes da hora.
Aproveitei para começar na estreia de Roger Moore no papel. Depois de Sean Connery tornar o personagem famoso, ficar de saco cheio dele, largá-lo e voltar para o papel uma última e infeliz vez, ele enfim decidiu abandonar o manto. Por sorte, George Lazenby já havia estabelecido o precedente de que o personagem não iria morrer com o mesmo ator e que o legado continuaria, então foi uma decisão natural mudar o ator novamente. Entra Roger Moore, que já havia sido considerado para o papel em “On Her Majesty’s Secret Service” e até interpretado o agente em uma esquete de comédia de 1964, como o terceiro ator oficial da EON Productions.
A estréia de Moore no papel vem num momento esquisito para a série, no qual os livros eram adaptados de acordo com uma agenda cultural para maximizar o lucro. O livro homônimo que serviu de base acompanha as aventuras de Bond conforme ele passa por Nova Orleans, pelo Caribe e pela Louisiana. Já o filme segue um caminho parecido, colocando James Bond (Roger Moore) para investigar as recentes mortes de agentes do MI6 que acompanhavam o Doutor Kananga (Yaphet Kotto), ditador de uma pequena ilha caribenha chamada San Monique. Bond é levado por um caminho tortuoso que passa pelo submundo criminoso de Nova York e vai até florestas tropicais em ilhas paradisíacas.
“Live and Let Die” aproveita a popularidade do movimento do blaxpoitation nos Estados Unidos introduzindo uma aventura de James Bond pela cultura negra americana. Com o advento de filmes como “Sweet Sweetback’s Badasssss Song” e “Shaft” e a renovação de relações raciais no começo dos Anos 70, a figura afro-americana tomou uma posição de maior protagonismo dentro do cinema, o que engendrou uma nova geração de cineastas negros contando histórias sobre e para para suas comunidades, até eventualmente se popularizarem com outras audiências. Faz sentido 007 fazer parte dessa expansão, já que sempre foi uma série bastante branca: um espião britânico que viaja o mundo e visita os lugares mais impressionantes, tem a tecnologia ao seu alcance e está sempre em grande luxo.
Dessa vez, o agente visita o Harlem. O que seria completamente normal para qualquer filme Policial ou de Espião investigar um bairro no coração da cidade e acabar em uns cantos pouco amigáveis, em “Live and Let Die” tem um lado engraçado porque o sentimento é o mesmo de quando ele visita um lugar exótico: ele está fora de seu habitat natural. James Bond vestindo um sobretudo de lã, luvas e um cabelo bem penteado em Nova York é quase como “Um Maluco no Pedaço” em termos de ele próprio ser o exótico ali. “Live and Let Die” trata essa visita urbana como uma visita a um novo planeta, conhecendo seres diferentes e forasteiros. Pensando agora, é uma perspectiva um pouco racista. Na cidade, todos os negros se conhecem, se comunicam e têm algum tipo de ligação com o crime ou, ao menos, todos que cruzam o caminho de Bond. É quase como se houvesse uma seita étnica em que todos possuem um pacto silencioso de cumplicidade, de não ver nada e não contar nada e ajudar quando necessário. Apesar de alguns desses estereótipos às vezes eram encontrados em outras obras da blaxpoitation e retratados por diretores negros, aqui soa estranho e até cômico por se levar alguns absurdos a sério e de forma literal.
Outros pontos como o flerte com o Vodu levam a série para um patamar que nunca tinha sido visitado e nunca mais foi: um lado mais sobrenatural. O enredo em si trata de assuntos bem mais simples como líderes corruptos, tráfico de drogas e assassinato de agentes, mas há pinceladas de esoterismo como Tarot, Vodu e acontecimentos que envolvem algum tipo de misticismo sem entrar em detalhes e explicar o porquê das coisas. Elas só são. Toques experimentais como esse são parte do que torna “Live and Let Die” tão único de forma inofensiva , sem exageros como se vê no retrato da rede de vilões e em como Bond explora esse mundo.
Mas também não se pode esquecer que esse é o primeiro James Bond com Roger Moore no papel e quão bem ele vai. Muitos o criticam pela sua interpretação se distanciar do que Sean Connery estabeleceu anteriormente. Ele é mais elegante, mais fino e mais seguro, num geral. Não arrogante e convencido como antes, mas alguém que parece saber como sair de qualquer situação sem chegar a se esforçar muito. E embora sua era tenha pontos negativos, sua persona mais calma e sofisticada como 007 não é uma delas. Se há algo para culpar, são os roteiros que o colocavam em situações absurdas, ridículas e até desnecessárias.
“Live and Let Die” até que se leva a sério e é um dos filmes de Roger Moore menos bobos, mesmo com os toques esotéricos na trama e a persona do ator. Não há tanta inclinação para comédia e bobeiras como em “Moonraker“, por exemplo. A obra é engraçada sem querer, conserva seu humor afiado e tem o começo de uma tendência de praguejar Moore com alguma imbecilidade extraordinária, pelo menos uma. E não falo de mesas giratórias em restaurantes, elevadores no meio da floresta ou totens armados, mas de coisas como a morte do vilão, que é de longe a mais idiota de toda a série. Não sei se a intenção era deixar leve ou engraçado ou se foi apenas uma ocorrência de efeitos especiais terríveis. Ao mesmo tempo, qual era o problema com um tiro na barriga? E isso é triste porque os vilões, ainda que não sejam os absolutos melhores de todos, são únicos de sua própria forma e deixam boas lembranças de um tempo clássico de vilões com alguma característica muito icônicas como um braço mecânico multifunção, sem cair no ridículo.
E falar tudo isso sem elogiar “Live and Let Die” pelo que ele é, um filme de ação, é quase perder o rumo. O nível se mantém alto nas várias sequências de ação que compõem a base dessa obra que depende mais delas do que de um enredo complexo. No fim, tudo quase sempre se resume a derrotar algum vilão no centro de um grande plano e aqui não é diferente, o que muda é o caminho até lá. Regado a enormes perseguições de barco pelos bayous americanos e cenas marcantes como a fazenda de crocodilos, há muito a ser encontrado aqui no quesito de sequências bem pensadas. Há bastante variedade em ambição, duração e tipo de cena, e a execução é excelente, o que é surpreendente depois de Guy Hamilton apresentar um grande fiasco dois anos antes com “Diamonds are Forever“.