Eu não achei nada demais pelo trailer. Ele entregava algumas cenas de ação e o enredo básico como qualquer outro trailer, exceto que as cenas escolhidas foram bem aquelas que ilustram o tipo de humor que eu odeio nos filmes de Matthew Vaughn, um tipo de humor que me incomoda e que já não funcionou em outros dois outros trabalhos parecidos, “Kingsman” e “Kingsman: The Golden Circle“. Assim, dá para dizer que minha empolgação não era a maior de todas para ver “Argylle”. Por sorte, a premissa beira tanto o absurdo e tão prepóstera que despertou minha curiosidade para ver se a experiência seria muito ruim ou se poderia ser surpreendido de alguma forma.
A princípio parece um tipo de paródia de James Bond envolvendo um agente extremamente atraente e bem-vestido que sai em missão para tentar capturar uma criminosa também atraente em uma cidade da Grécia. As coisas dão errado e uma perseguição no estilo de “For Your Eyes Only” acontece. Mas nada disso importa de fato, porque era apenas mais uma aventura do último livro de Argylle (Henry Cavill), o agente secreto que estrela uma série escrita por Elly Conway (Bryce Dallas-Howard). Ela tem desfrutado de sucesso nos últimos cinco anos com seus livros, todos muito bem recebidos pelo público e que a deram uma vida confortável na beira de um lago com seu gato, Alfie. O sossego acaba quando espiões de verdade passam a perseguí-la porque, de alguma forma, sua escrita tem sido tão fidedigna que está prevendo eventos futuros da espionagem global.
Pois é. Não é a trama mais normal de todas e uma que chega muito perto de desafiar a suspensão de descrença e não só qualquer uma, mas uma inicial que normalmente define se a pessoa vai querer assistir ou não. É como ler a sinopse no streaming e decidir se vale suas próximas duas horas de vida ou se vai cair no esquecimento de um catálogo de centenas. Quando eu descobri no trailer que era essa a premissa, confesso que julguei como uma ideia meio idiota. O potencial estava ali para ser uma porcaria em que a autora tem o poder de escrever o futuro literalmente ou prevê-lo por algum motivo; talvez ela ser tão incrível que manifesta a ficção na realidade e seus maiores heróis e vilões passam a existir numa dinâmica estilo “Wes Craven’s New Nightmare” inversa. As possibilidades eram várias, e “Argylle” de alguma forma consegue subverter esse temor e até tornar o roteiro um dos pontos mais altos do filme.
Dizer que existem algumas viradas de enredo no meio do caminho é pecar pela modéstia. “Argylle” sabe muito bem como ressignificar os pontos que mais despertam dúvida e criar algo de fato inesperado. O simples fato de meus piores medos com relação ao enredo não terem se concretizado já é uma grande tranquilidade, e o melhor é que se cria uma história engajante a partir dessas perguntas primárias sobre prever o futuro com livros de ficção. Até o Agente Argylle como personagem de ficção participar do mundo real é abordado de forma orgânica sem passar vergonha como pode parecer. Exceto por uma ou outra reviravolta que são apenas medianas, as principais conseguem de fato surpreender e dar uma nova dimensão ao enredo, até que não restam mais perguntas quando chega a conclusão. Exceto pela última cena e a pós-créditos que trazem um novo twist sem nenhuma explicação aparente.
Se existe um ponto em que o roteiro se perde um pouco, é a partir do último ato. Até então, a construção estava perto demais de um alto patamar que achei impossível para “Argylle” em um primeiro momento, porém Matthew Vaughn faz o que já havia feito antes em “Kingsman” e escolhe o clímax para jogar tudo para o alto, jogar o tom do filme no lixo e favorecer estética em vez de conteúdo. Parece que nesse momento, o diretor tem uma grande idéia do que seria, na concepção dele, uma sequência altamente estilizada, coreografada e exagerada colocada no clímax para efeito máximo. Só talvez não o efeito máximo positivo como ele talvez quisesse, é o exato oposto que acontece.
Pensando agora, lembra um pouco a prática de alguns musicais clássicos de usarem o clímax para a sequência mais ambiciosa e cara da obra, um número de canto e dança mais longo que todos os outros que pode até não ter uma função narrativa tão clara, mas funciona por puro mérito ou encaixa em termos de ritmo. “Argylle” tenta algo similar e falha. Não vou dizer que falha miseravelmente e que isso estraga o filme inteiro, pois os acertos até então pesam mais do que esse espetáculo infeliz, é apenas um momento que quebra uma sequência de acertos com uma indulgência desnecessária. Se até então um espião derrotar dezenas de outros e sempre sair ileso funciona dentro da lógica da armadura de roteiro, essa tal sequência infeliz ultrapassa o limite em todos os sentidos. Explosão de estímulos, uma cena visualmente bonita e só isso.
Para não dizer que foi completamente gratuito ou do nada, já havia sinais desde o trailer desse humor e incoerência tonal, e dessa vez foi certeiro em apontar que o gato seria um problema. Entendo a intenção de transformá-lo em um alívio cômico e até num objeto de tensão para uma personagem ansiosa e ultra-preocupada com tudo. Talvez poderia ser engraçado trabalhar com a ironia inerente de ter um tiroteio generalizado e ossos quebrados aos montes enquanto um gato fofinho está na mochila; quem sabe usar isso de forma mais sutil ou engraçada de fato em vez de encher de computação gráfica horrível e pesar a mão em tentar o fazer ser o centro da comédia.