Como foi bom poder atualizar a imagem que tinha da carreira recente de Anthony Hopkins. De seus últimos trabalhos, o destaque infeliz é sua participação no quinto filme da série Transformers, “The Last Knight“, num papel difícil de levar só um pouco a sério e que mais parece uma oportunidade de dinheiro fácil por não ter impacto algum dentro da história. Até aí, estaria sendo injusto se não lembrasse de “The Two Popes“, uma performance muito mais relevante e digna de menção em qualquer sentido. Mas ainda faltava algo, algo grande parar tirar a mancha de um papel tosco e ainda marcar carreira com outro ponto alto. “The Father” fornece essa oportunidade, a qual é agarrada e aproveitada pelo ator a nível de garantir um Oscar muitíssimo merecido.
Anthony (Anthony Hopkins) está no auge da terceira idade com seus 81 anos. Ele mora com a filha, Anne (Olivia Colman), em seu apartamento em Londres. Ou será que o apartamento é dela e ele mora com ela? Quanto tempo ela vai ficar morando com ele até arranjar um marido e sair de casa? Ou será que ela já foi casada um dia e não deu certo? Anthony sofre de demência e as coisas não são mais tão claras para ele. O que parece ser um arranjo simples se torna um pesadelo quando ele recusa qualquer tipo de ajuda e ainda mostra ser a teimosia em pessoa.
Gosto de filmes simples como “The Father”. É um estudo de personagem de um senhor de idade com demência e talvez até Alzheimer; os principais são dois, pai e filha, com poucos coadjuvantes servindo de apoio; e a obra inteira se passa em um ambiente. É similar a uma peça de teatro e não por coincidência, pois o material de base é uma peça escrita por Florian Zeller, que também assina direção pela primeira vez em sua carreira. Parece que tudo é menos complexo quando se descreve a obra dessa forma, separando as principais partes e dizendo que é mais simples quando comparada, por exemplo, com “The Godfather” e a dúzia de nomes importantes do enredo. Mas isso não quer dizer nada quando se fala em profundidade dramática e competência, ser simples é só uma fachada e nem mesmo uma das mais certeiras. Nas mãos certas, até mesmo o espaço de um apartamento é o bastante para expandir uma história além da superfície.
Como isso funciona na prática? Há muitas possibilidades. “12 Angry Men” é um exemplo notável que fica praticamente numa sala só e tem competência de sobra baseada apenas na dinâmica do diálogo entre os doze jurados. “The Father” tem sua própria abordagem: colocar a história na perspectiva do velho. E assim tudo muda. O que era para ser algo objetivo, de fácil percepção e entendimento, torna-se algo mais complicado porque a pessoa em questão não funciona direito. Como sabe qualquer pessoa que tenha assistido a alguns filmes na vida, a câmera é como um ponto de vista sóbrio da situação, se não como um narrador onipresente então emulando a perspectiva de um personagem em estado psíquico normal. Claro, alguns exemplos incomuns fazem questão de se colocar no lugar de um indivíduo drogado, alterado ou louco com efeitos variados, abusando de efeitos especiais para estabelecer um ponto. A diferença aqui é que Anthony não tem problema de visão nenhum, enxerga e escuta tão bem quanto qualquer um. É sua mente que funciona diferente.
Eis que entra a genialidade da obra em aproveitar a percepção desorganizada da realidade para ressignificar e atribuir novos sentidos às mesmas coisas em uma mesma história. E essas são poucas, afinal tudo se passa em um mesmo ambiente com as mesmas pessoas. O que acontece quando sua mente deixa de ser confiável? Os olhos funcionam, mas é a cabeça que decide que uma bola é uma bola e não um quadrado, que essa pessoa é sua filha e não Madre Teresa de Calcutá. Aquilo que sempre funcionou sem que fosse necessário pensar a respeito passa a ser uma fábrica de surpresas para o indivíduo e para aqueles ao seu redor, em especial. E não é revelação de enredo dizer que a história envolve demência, fica claro bem cedo o que está acontecendo com o protagonista. Há muito mais em “The Father” para absorver do que essa condição médica.
Algumas condições são recriadas usando elementos físicos concretos. Se alguém está louco de LSD como em “Fear and Loathing in Las Vegas“, pode enxergar coisas onde não existe nada ou elementos físicos se deformando. Quando o objeto e o cenário são os mesmos, e a condição não envolve alucinações, diferentes artifícios se fazem necessários para atingir um efeito parecido, algo como mudanças sutis no design de produção, o uso de atores novos em cenas pontuais e a confusão mental como referência para uma narrativa fragmentada num estilo parecido com “Memento”. Assim como nele, a narrativa se torna mais interessante por ser necessário montar as partes e entender o que aconteceu de fato, já que elas vêm fora de ordem, às vezes repetidas e um pouco distorcidas. Cabe ao espectador o exercício de ligar os pontos, já que “The Father” não entrega todas as respostas mastigadas.
Talvez devesse? Não muito, claro, algumas delas poderiam ser um pouco mais claras para deixar estabelecido o que é fato mesmo. Não é nada que atrapalhe o entendimento da obra ou seja essencial, vale dizer, é só um esclarecimento que poderia ter sido feito sem extrapolar para a exposição exagerada. De qualquer forma, um pouco de mistério e ambiguidade não faz mal.
No fim das contas, “The Father” foi um dos mais agradáveis e surpreendentes da temporada do Oscar, acho que posso dizer que foi o melhor dos indicados a Melhor Filme junto com “Mank“. Anthony Hopkins acaba tirando a última oportunidade que Chadwick Boseman teria de vencer um Oscar — ainda que não em vida — porém ao menos não houve nenhum ato de previsibilidade por parte da Academia em querer premiar o sujeito porque ele faleceu, premiaram quem de fato entregou a melhor atuação do ano.