Todo mundo já ouviu falar de “Cidadão Kane” ao menos uma vez na vida. Cinéfilo ou não, em tom de brincadeira ou não, o filme acaba sendo mencionado e vendo sua reputação lendária se tornar ainda maior. Há quem fale dele se referindo a um grande trabalho de arte, outros podem apenas fazer a mesma alusão sem seriedade, buscando apenas um parâmetro exagerado para fazer graça. Já quem de fato decidiu ultrapassar a cortina de fumaça e conhecer a obra sabe que sua história envolve mais que Rosebud. Começa por existir talento envolvido além de Orson Welles: Herman J. Mankiewicz, um nome possivelmente desconhecido para alguns e apenas um pouco familiar para quem conhece o trabalho de seu irmão, Joseph L. Mankiewicz. Essa é a história de Mank, o primeiro deles.
Depois de uma ascensão meteórica para a fama, o jovem Orson Welles recebe a proposta impossível para seu tempo de dirigir dois longas-metragens com total controle criativo e direito de corte final. A primeira de suas propostas aceitas pelo estúdio é “Cidadão Kane”, que conta a história de um magnata da mídia e sua vida de reclusão, luxos e polêmicas. Por trás do roteiro, um homem que não deseja nenhuma conexão com o projeto, Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman). Um roteirista veterano da MGM, alcóolatra e de perna fraturada, Herman corre contra o tempo e luta contra si mesmo para entregar seu roteiro a tempo e dar início à uma das maiores lendas do cinema americano.
Se soa familiar, é porque tantos outros trabalhos alimentaram aquilo que se conhece hoje como o típico filme de Oscar: a cinebiografia, a história baseada em fatos, a obra que capitaliza em temas modernos. “Mank” é bem mais do que a biografia de uma figura importante da Hollywood da Era de Ouro para quem a maioria das pessoas não ligam mais. Ele não inventou nenhuma técnica nova, não é o pai de nenhum movimento cinematográfico, não ficou famoso por orquestrar alguma revolução no Sistema de Estúdio. Quem é esse cara então? O fato de a resposta não ser tão óbvia sugere que o público possa ser limitado. Os entusiastas por essa nova produção Netflix com certeza não estariam em igual número a “The Irishman“. Resumidamente, pode ser descrito como feito para os amantes de “Cidadão Kane” e da Hollywood clássica.
Se ainda for do interesse, mesmo estando fora desses grupos, há um excelente trabalho a ser encontrado, um que arrisco dizer ser o melhor dentre os ridiculamente poucos que vi de 2020. “Mank” não conta só a história de um indivíduo em um dado momento, um homem de perna quebrada tentando escrever um roteiro sob pressão externa daqueles que querem ver o trabalho pronto e de si mesmo, uma vez que seus vícios cobram seu preço ao levar o homem à beira da implosão. Essa parte é o principal chamariz da obra: “conheça de onde veio e como foi feito o melhor filme de todos os tempos”. Enfim chega o ponto em questão de quão interessante pode ser a escrita de um roteiro. Há um limite de entretenimento em potencial no som das teclas de uma máquina de escrever. Contudo, histórias são antes vividas para então serem escritas.
A obra não consegue permanecer em um só ponto e salta para o passado, mostrando o caminho sinuoso e acidentado que pavimentou a acidez na essência do roteiro e da personalidade do protagonista. É um caso de conhecer o autor para conhecer a obra, exceto que o mundo inteiro conheceu a obra para conhecer o autor 79 anos depois, e o tempo ouco importa para quem de fato se interessa. “Mank” traz, junto disso, um retrato de seu tempo para muito além do que hoje se espera. Nada de citar nomes aos montes em uma forma de fazer serviço aos fãs com as tais referências tornadas famosas pela cultura popular. Essa obra está muito acima dessa proposta superficial. Claro que nomes famosos vão ser mencionados, eles viveram no mesmo tempo e espaço e só por isso estão ali. Acima de tudo, os retornos ao passado possuem propósito em sua ilustração do caráter do protagonista e na construção do ambiente diretamente ligado ao seu ofício. Nem mesmo a exposição do funcionamento da Era de Ouro é gratuita. As qualidades do roteiro de Jack Fincher, pai do diretor David Fincher, são apenas uma parte do sucesso da obra, sendo especialmente apropriado exaltar um roteiro sobre um roteirista antes do resto dos elementos.
E já que se fala de Fincher, não se pode deixar de lado a influência da direção na criação de um filme dos Anos 40 em 2020. Seguir nessa proposta não seria um retrocesso que ignora os 80 anos de construção da linguagem cinematográfica desde então? Certamente que não. Há vários trabalhos da época que envelheceram pouco em relação ao que se aceita hoje como normativo. Parecer antigo vai além de ser em preto e branco, ter carros antigos, gente fumando e todo mundo de terno ou vestido. Nem a fotografia em preto e branco é tão simples, pois o longa foi gravado monocromático e, assim, todo o design de produção e figurino teve de escolher seus elementos de acordo com o contraste produzido. Assistir a “Mank” é ver um produto vindo de alguém que assistiu, conhece e compreende o que dá o ar de filme antigo à obra.
E isso é mais relevante que um capricho estilístico, sem dúvida. Funciona em consonância com o tipo de obra que se tenta produzir, conversa com o conteúdo e com o contexto narrativo sem se obrigar a seguir algumas convenções que de fato não são tão bem aceitas hoje em dia. Ou seja, ao mesmo tempo que um plano-seqüência de 13 minutos, um plano de helicóptero ou uma câmera virtual não são utilizados por incompatibilidade temporal, também não se encontra exageros em interpretações, amarras moralistas ou uma composição de cena linear em frente à câmera. Não se encontra nada na interpretação de Gary Oldman que se possa chamar de antiquado. Ele trabalha com uma pessoa que, para mim, era conhecida principalmente por sua associação à obra de Welles e sua vitória no Oscar, então a eleva ao status de indivíduo de inteligência e esperteza notáveis, uma fonte mais que crível para todas as palavras que fizeram história quando vistas no filme finalizado. Nada fica a cargo da imaginação porque Herman J. Mankiewicz não perde uma oportunidade de deixar seu comentário sagaz.
Com todo o tempo que demorei para escrever essa análise, já foram e vieram várias indicações e premiações. Não é surpresa que tenha sido esnobado de vários prêmios. Ainda na época, sua exposição reduzida e conseqüente popularidade limitada já pressagiavam o impacto nos prêmios. Talvez por se propor a ser muito como um filme de época em todos os sentidos, não duvido que isso tenha funcionado como desencorajamento para o público. Bem, quem julga mal “Mank” por razões superficiais, não sabe o que perde. A trilha sonora soa como algo diretamente de Bernard Herrmann, e quem, em sua sã consciência, critica uma obra-prima como a trilha sonora de “North By Northwest” só porque ela tem mais de 60 anos? “Mank” tem uma proposta bem específica, mas isso de forma alguma tem a ver com a qualidade abundante que ostenta.