Raoul Duke (Johnny Depp) é um jornalista. Seu trabalho é ir para Las Vegas e fazer a cobertura do Mint 400, uma grande corrida off-road nos desertos de Nevada e de que todos querem saber mais sobre. Parece uma tarefa simples o bastante e até rotineira de imprensa, mas é muito mais do que isso para Duke. Relativamente. Junto de seu advogado, Gonzo (Benicio Del Toro), Duke aproveita a oportunidade para juntar o maior número de drogas conhecidas pelo homem para deixar seu trabalho mais interessante. “Fear and Loathing in Las Vegas” começa numa rodovia no meio do deserto com um Chevrolet Impala conversível, uma dose forte de LSD e termina em, bem, sabe-se lá onde.
Qual o motivo de ver um filme sobre uma jornada e personagens que nem sabem para onde vão, despreocupados com qualquer questão mundana e corriqueira? De que importa fazer um bom trabalho e ser reconhecido pelo esforço, compensado e depois receber aprovação de quem quer que tenha designado a tarefa? Isso é pensar muito além, é melhor voltar um pouco para outras coisas mais básicas. Saúde mental e física, estar com a cabeça no lugar para reagir ao mundo com espontaneidade e razão, ter o bem-estar como status padrão e se sentir bem na situação que for. Besteira. Não há motivo para se colocar neste conformismo patético e agir exatamente como o resto do mundo quando é possível tomar ácido, cheirar um pouco de pó e enxergar aquilo que ninguém mais vê nos lugares mais inesperados. Regras? Trabalho? Bom senso? Desrespeitar limites de velocidade porque uma revoada de morcegos aterroriza o carro é tão mais interessante.
É essa a lógica — ou a falta dela — que rege a filosofia dos personagens de “Fear and Loathing in Las Vegas”. É essa a dinâmica da narrativa da história. A premissa do livro de Hunter S. Thompson, que serve como base para o filme, fala de uma crônica de bons tempos de cérebros adulterados regados a drogas. Seja lá qual for a propósito por trás do uso de entorpecentes ou psicodélicos, tudo se trata da experiência. Há quem busque no LSD a expansão de consciência para além das limitações auto impostas de uma pessoa acostumada a enxergar limites na percepção sensorial e no pensamento racional; há também aqueles que querem ver elefantes amarelos emergindo do asfalto flamejante com as sete chamas do evangelho da revelação cósmica. Enquanto isso, existem pessoas que vivem o mesmo dia cinco ou seis dias por semana com apenas pequenas frestas de oportunidade de sentir o gosto do diferente, de não sofrer o peso das demandas da realidade e da ausência de esperança. Elas buscam encontrar refúgio, achar uma fuga e escapar, mas passar por uma experiência, acima de tudo.
“Fear and Loathing in Las Vegas” é uma experiência também. Não no sentido comum da palavra porque até mesmo o mais tosco dos filmes é uma experiência e até uma simples caminhada até o supermercado também é. Existem exemplos e exemplos disso, ao passo que o filme subverte os padrões narrativos de uma história sustentada por noções de causalidade, progressão e desenvolvimento para expor um ponto de vista nascido de uma vivência. Quando Hunter S. Thompson, o autor do livro, decidiu se entupir de drogas e seguir com a vida da forma mais errática, seu objetivo foi evidenciar algo da forma mais indireta e também mais real possível: vivendo e justificando seu argumento através de atos. No meio dos Anos 60, surgiu um movimento na esquina da Haight com Ashbury em São Francisco com pessoas usando flores no cabelo e falando de paz, mas em algum ponto isso deu errado e erodiu até que toda a alegoria perdeu o sentido. Há algo por trás disso, porém não é dissertando que isso se apresenta aqui.
Embora pareça simples, um dos grandes atrativos de “Fear and Loathing in Las Vegas” é ver Johnny Depp e Benicio Del Toro agindo como os maiores loucos num raio de 50 quilômetros, exceto talvez por mendigos e viciados. Eles não são os maconheiros atrapalhados de sempre, uma outra versão de Cheech e Chong envolvendo palhaçadas e situações tontas com os personagens chapados demais para fazer qualquer coisa. Não, o nível é bem mais pesado em praticamente todos os sentidos e só não envolve tragédias por algum milagre, pois não é por falta de drogas que alguma besteira não acontece.
Pensei em começar esta frase falando que os dois usam drogas no limite do possível até me lembrar que a aventura deles ultrapassa o que eu considerava possível, vai bem mais longe e faz ponderar em como diabos qualquer um dos dois fica vivo. As doses cavalares estão sempre ao alcance e, de alguma forma, os atores conseguem entrar no estado de espírito de um mega drogado de forma convincente. Sim, eles são bobões, ridículos e exagerados em vários momentos, mas “Fear and Loathing in Las Vegas” nunca parece uma encenação teatral de segunda categoria. Ao mesmo tempo que Johnny Depp faz um papel de retardado ao se esconder atrás da televisão e achar que está numa zona de guerra por causa dos sons do programa passando, ele fala seu amontoado de asneiras relativamente coerentes com a realidade que ele acha que vê sem deixar ruir a máscara da ilusão.
Não há melhor palavra para descrever o porquê tudo funciona além de engraçado. “Fear and Loathing in Las Vegas” não é um filme de arrancar gargalhadas e criar situações com o intuito específico e planejado de fazer as coisas darem comicamente errado. É apenas insanidade e cérebros derretendo 24 horas por dia primeiro com uma droga e depois com uma próxima até que nada mais faça sentido. Talvez há de se argumentar que fazer papel de louco é fácil o bastante, mas fazer disso um entretenimento consistente certamente não é. Descrever as situações é pedir para tirar o brilho da própria idéia de estar drogado, de achar coisas pequenas as mais fascinantes da galáxia enquanto regras normalmente seguidas deixam de importar. Não há descrição fiel ao humor que equipare ver Johnny Depp interpretando um papel inteiro com piteira e cigarro na boca enquanto fala rápido, age estranho e oferece insights de procedência duvidosa da louca realidade percebida por ele em sua narração. Esta realidade, por sua vez, representada sem depender de truques baratos disponíveis amplamente hoje em dia, Terry Gilliam apenas apela para os efeitos especiais quando realmente faz sentido e prefere deixar seus atores carregarem a maior parte da insanidade por si.