“Ma Rainey’s Black Bottom” começa em Chicago, Anos 20. A banda de Ma Rainey (Viola Davis) chega ao estúdio para a gravação de um novo disco da famosa mãe dos blues. Ela está atrasada. O grupo tem tempo para ensaiar seus números algumas últimas vezes até que ela chegue e as sessões comecem oficialmente. Fechados num porão com seus instrumentos musicais, sobra tempo para muito mais do que prática conforme a banda se aprofunda em conversa. Levee (Chadwick Boseman), o trompetista, tem suas próprias ambições de fazer nome dentro da indústria da música a qualquer custo, seguir seu caminho independente de seus laços com Ma Rainey, que não aprova do rapaz que fala demais para um membro de banda.
Sim, esse será para sempre lembrado como o último filme de Chadwick Boseman. O ator, mais conhecido por seu trabalho como o Pantera Negra no Universo Cinematográfico Marvel, faleceu de repente e tirou o mundo dos eixos com a notícia. Ninguém sabia que o ator estava doente e muito menos que tinha câncer. Seu falecimento veio tão forte quanto poderia. E agora? Ele havia continuado trabalhando? Ainda se veria o finado nas telas ou seria “Avengers: Endgame” seu grand finale? Houve três projetos depois desse. Talvez nenhum tão grande quanto, mas que mostram diferentes lados de um mesmo ator. “Ma Rainey’s Black Bottom” marca o único lançamento póstumo e o mais antecipado deles, baseado em uma celebrada peça por August Wilson.
Para um filme chamado “A Voz Suprema dos Blues” há muito pouco da voz suprema dos blues. Antes de assistir, achava que era uma biografia da cantora estampada na capa e interpretada por Viola Davis. Aos que esperavam encontrá-la em mais um grande papel para vencer seu segundo Oscar, talvez se decepcionem ao encontrá-la com tempo de tela bastante reduzido e quase irreconhecível sob a maquiagem e a figurino. Parecia que era uma história direta ao ponto sobre uma cantora importante, ainda que obscura, para a história da música e sobre o nascimento de um gênero. Tentei me manter ignorante sobre o conteúdo específico da obra, sabendo apenas dos atores envolvidos, do screener enviado à minha casa e de ser um trabalho póstumo de Boseman. Bem, houve surpresa ao descobrir que essa é uma história muito mais do trompetista do que da tal mãe dos blues. De longe. “Ma Rainey’s Black Bottom” — que empresta seu nome de uma canção da artista — é o conto do trompete supremo do blues, mais apropriadamente.
E não há problema nisso. Bem, talvez para os tradutores brasileiros que não se ajudam e mantêm sua reputação questionável. Quanto ao filme, ter mais do personagem de Chadwick Boseman, especialmente com uma atuação forte de apoio, muda um tanto o foco da obra sem que isso seja negativo de alguma forma. Ele é o principal de “Ma Rainey’s Black Bottom” em todos os sentidos. Ele possui motivação, ambição, um passado e algo a dizer. Muito a dizer. O ator tem a chance de mostrar o alcance dramático a todos que ainda não o conheciam para além de sua persona de super-herói. Eis um personagem com conteúdo de sobra, com cicatrizes escondidas sob seu terno desajeitado e personalidade incessantemente verbosa. Ele fala e fala o tempo todo como se um número de palavras muito pequeno por minuto fosse mortal de alguma forma. Pode até ser que fosse, pois sua necessidade de segurança, na falta de estímulo externo, encontra conforto nas constantes reafirmações sobre seus planos de se tornar um gigante da música. Trompetista de Ma Rainey? Por favor, ninguém vive disso para sempre. Ele quer mais e faz questão que todo mundo saiba disso.
Boseman convence no papel. Mal parece a mesma pessoa que vestia um collant preto e estava musculoso enfrentando as tropas de Thanos em Wakanda. Se ele tinha algo a provar como ator antes de morrer, faz isso e mais com sua interpretação que, como se o enredo não fizesse isso o bastante, chama atenção para si com a manifestação do brilhantismo do paradoxo de Levee. A propósito, é com a performance que algumas nuances teatrais são amenizadas; os momentos clássicos em que o mundo para porque lá vem um monólogo gigante com uma história expositiva. Por si, é uma questão exclusivamente de roteiro, problema de adaptação que traduziu literalmente a linguagem do teatro para o cinema. Contudo, sempre pode ser pior. Só não é porque o ator torna possível que aquele momento levemente irreal seja aceito como verdadeiro, ao menos em sua essência. Ainda há a questão do roteiro se apoiar nesses momentos artificialmente cerimoniais para avançar, o que desagrada por chamar mais atenção do que deveria para o artifício do que exclusivamente para o conteúdo.
Enquanto isso, Ma Rainey só apareceria perto do meio do filme se não fosse uma cena introdutória para apresentar quem é a tal líder da banda. Ela só retorna quando a gravação vai começar de fato, representando ao limite a postura de diva, da artista cheia de de exigências para satisfazer seu sentimento de auto-importância e seu orgulho como artista negra. Mas não é só isso. Há mais por trás da persona de prima-dona que tantos artistas adotam para evitar se reduzir a uma descrição rasa e não muito inovadora de uma celebridade. Eventualmente se explica a ligação disso com temas maiores envolvendo uma perspectiva ímpar do cenário artístico negro dos Anos 20. Se hoje já é difícil manter uma vida na arte, imaginar algo similar 100 anos atrás parece inconcebível, ainda mais para uma parcela da sociedade que ainda estava a décadas do advento dos Direitos Civis.
A maravilha vai além da fotografia de Tobias A. Schliessler destacando a pela suada e brilhante, que é quase marca registrada de Ma Rainey. Para todos os sentidos, “Ma Rainey’s Black Bottom” é praticamente uma chamberplay, um filme sobre blues que se passa num porão e vai muito além da música ao tocar também nos blues pessoais. Eis a magia de uma pele oleosa. O que seria indesejável, anti-higiênico e não muito atraente no geral, faz parte de uma caracterização inteligente como um símbolo óbvio do esforço e outro não óbvio da tensão do confinamento de pessoas numa sala, num emprego e num status sem perspectiva de futuro. Eles estão presos em sua própria realidade, embora a forma como enxerguem isso difira, com alguns aceitando a condição e outros em negação, preferindo acreditar que não estão.
O fato de tudo estar ligado de alguma forma, mesmo que sutil, mostra como “Ma Rainey’s Black Bottom” é uma obra que não se preocupa apenas com personagem, apenas com contexto histórico ou apenas com o enredo, há integração entre todos em função de um argumento, de mostrar uma realidade que transcende representar uma voz famosa da música ou um drama pessoal e consegue abraçar uma gama de outros temas, embora não execute todos com o mesmo sucesso. Especialmente no final, “Ma Rainey’s Black Bottom” dá uma guinada em direção ao drama trágico de forma rápida e até súbita demais da forma como foi dirigida, sem aproveitar as deixas dramáticas de alguns eventos críticos para pavimentar o caminho até o final explosivo. Por fim, a obra sofre em seus últimos momentos, perdendo a chance de terminar melhor e ser melhor em geral.