“Soul” é o segundo lançamento da Pixar durante a pandemia, junto com “Onward”, e o primeiro a estrear oficialmente pelo Disney+, embora alguns poucos países tenham tido uma estréia tradicional nos cinemas. Ironicamente, essa animação trata diretamente de um assunto que vem aterrorizando o mundo há mais ou menos um ano: a morte. De todos os assuntos possíveis, a Pixar decidiu abordar justamente a presente pedra no sapato mundial; pessoas morrendo aos milhares por conta de um vírus e morrendo também no desenho animado supostamente feliz. Claro, o filme já estava em produção antes de qualquer pessoa saber o que é Coronavirus. Resta, então, tratar de um tema pesado num filme supostamente acessível para crianças.
A vida de Joe Gardner se resume a dar aulas de música numa escola pública de Nova York. Não é o melhor trabalho do mundo nem o mais realizador, as crianças não se interessam muito pela arte de tocar um instrumento e não respeitam isso nem seu professor muito. Mas é o que ele tem no momento. Sua mãe quer que ele continua porque, afinal, é um trabalho estável que paga todo mês. Joe sempre teve outras idéias para sua vida e quase se entrega aos caprichos da vida mundana quando a oportunidade de outro surge em sua porta: Dorothea Williams, uma grande musicista de Jazz, busca um novo pianista para sua banda. O problema é que Joe morre.
Sim. Ele morre. É quase uma virada Hitchcockiana — se for para fazer uma comparação culta — que tira o protagonista de jogo inesperadamente. E num filme supostamente infantil, não menos. Pois é. A última demonstração de ousadia da Pixar talvez pareça que passe dos limites para alguns ao abordar um assunto tão delicado. Por isso muitos falaram que “Soul” não é filme para criança. E, claro, sempre há a discussão que os trabalhos da Pixar nunca são só para o público infantil. Nesse caso, fica um pouco mais forte o argumento porque a obra de fato parece um tanto pesada para os mais jovens. Ainda há a parte dos visuais bonitinhos, cores, música e humor para distrair da verdade, mas ela ainda está ali. Não se tenta esconder que o personagem está no além.
Não vou entrar em méritos de religião e o que acontece depois da morte porque não faz sentido. Cada um acredita no que quer e aceita a obra se quiser. “Soul” dá um passo em direção a interpretar o que acontece de fato sem se preocupar com o julgamento de sua audiência, e essa pode escolher acatar a obra e suas idéias de forma lúdica ou simplesmente rejeitá-la porque é prepóstero demais. Bem, se posso fazer uma recomendação, que seja a de dar uma chance para ver o universo paralelo criado aqui para explicar as complicações do pós-vida. Os responsáveis se esforçam para criar um novo mundo de dinâmica própria, sem depender dos clichês de bater no portão de São Pedro para entrar no céu, de sentar no colo do diabo no inferno ou passar um tempo no purgatório para se redimir dos pecados. A representação criativa introduz uma perspectiva sistemática e divertida que merece ser conferida pela atenção ao detalhe e por inventar uma lógica lúdica para os processos de vida e morte.
Mas não é esse o único atrativo de “Soul”. A idéia principal não é transformar o outro lado da vida em um playground e, assim como “Inside Out“, traz algo mais para sustentar narrativamente os conceitos a fim de que não sejam explorações criativas sem propósito. Elas têm seu valor, sem dúvida. Ver a interpretação da psique infantil através de personagens representando emoções, memórias categorizadas de acordo com sua cor e personalidade dividida em ilhas flutuantes é ser exposto a uma inventividade sem tamanho. E isso é só uma parcela de uma história preocupada em usar tais elementos criativos para desenvolver um ponto.
“Soul”, como título, indica bem mais que a alma literal, faz referência a mais do que a alma do protagonista vagando o além tentando voltar para seu corpo. O outro significado envolve a alma do indivíduo como ser vivo, alimentada e retro-alimentada pelos sonhos de vida. Ao mesmo tempo que esses dependem da pessoa colocar coração para que os objetivos sejam cumpridos com mérito extraordinário e transcendam a mediocridade, a alma também é definida pelos sonhos almejados. Afinal, quem é uma pessoa além de uma síntese de seus sonhos, frustrados ou não? O sonho do protagonista é ser músico. Viver de música porque é o que faz sentido e não há outra opção. Não há fracasso, há o sonho e há o tempo. Uma hora os dois hão de se encontrar.
“Soul” até começa parecendo uma história exclusivamente sobre música, só depois chega no polêmico ponto em que o protagonista cruza para o outro lado e o filme muda. Mas não tanto assim. Mudanças de cenário à parte, o coração da obra se mantém na busca de um homem pela vida que sequer começou a viver direito, pela busca por um sonho. É inspirador, é sofisticado, é uma metáfora e tanto para simplesmente reforçar o quanto vale a pena uma vida com um propósito nobre como se sentir realizado pela arte. Ah, e bonito também. Chega a ser surreal o nível de detalhe que a Pixar alcança no realismo de seus cenários, muitas vezes tendo muito pouco separando sua computação gráfica do mundo real. A atenção ao detalhe em iluminação, sombra, contraste e textura faz pensar que tal complexidade não tem outra explicação além de paixão. A narrativa com certeza não depende diretamente de um armário de madeira corretamente iluminado nos dez segundos que aparece em cena.
É irônico que o maior defeito de “Soul” seja também o que pragueja seu similar, “Inside Out“: uma flexibilização das regras por conveniência de enredo. É o clássico deus ex machina maquiado de forma que não seja tão súbito como um lance de sorte no último momento, mas um flerte perigosamente perto de quebrar as regras estabelecidas antes com tanto cuidado. Chega um momento em que o protagonista precisa, de qualquer forma possível, fazer algo. Então ele faz. E faz rápido demais. Primeiro porque o filme está acabando e o ritmo exige uma solução mais rápida; segundo porque as circunstâncias facilitam que ele cumpra o objetivo de acordo com essas exigências narrativas. Mas, enfim, é o único detalhe em uma experiência que vai vencer outro Oscar de Melhor Animação para a Disney/Pixar — com o Globo de Ouro já garantido no momento.