Esse é o filme de guerra da minha geração. Desde pequeno, ouvi as pessoas falarem sobre ele como algo grande, a televisão anunciando sua exibição e todos ficando empolgados por finalmente assistir algo diferente de um filme genérico de ação com Steven Seagal. Quando se falava em filme de guerra, era Soldado Ryan, assim como Roma Antiga era “Gladiator” e comédia ficava a cargo de Jim Carrey. Mais do que uma icônica produção de seu tempo, “Saving Private Ryan” sempre foi muito respeitado entre crítica e público como um dos melhores dos Anos 90, famosamente competindo pelo grande prêmio com outro excelente trabalho de Segunda Guerra, “The Thin Red Line“, e perdendo para o infame “Shakespeare in Love“. Há quem lembre da seqüência introdutória como um marco de direção cinematográfica dos livros técnicos e também quem apenas ache toda a experiência fascinante. Dois públicos saem satisfeitos.
Quase cinco anos de guerra se passam. As mortes chegam nos milhões e o conflito se encaminha para o fim conforme as forças dos Aliados preparam a ofensiva para reconquistar a Europa. As tropas desembarcam na praia da Normandia dominada pelos alemães e seguem em direção a Berlim para acabar com a guerra, porém as perdas são altas e o cenário logo se torna uma carnificina. Entre os mortos, um soldado chamado S. Ryan. O Capitão Miller (Tom Hanks) e parte de sua companhia sobrevivem, apenas para serem enviados numa missão incomum de encontrar o último sobrevivente da família Ryan e mandá-lo de volta para casa.
Toda vez que penso em descrever “Saving Private Ryan”, procurando palavras para descrever seu sucesso, só consigo pensar: “Esse é um grande filme”. É um resumo dos breves e também dos certeiros. Grande não só porque tem quase três horas, é algo digno de se colocar entre os trabalhos de importância artística que definem o cinema como arte e não só um veículo de entretenimento, ostenta todo o peso do termo “obra de arte” sem vacilar. Sem esquecer do entretenimento, claro. Isso não é um comercial de perfume com imagens elegantes que faz cada quadro ser uma pintura em movimento, estética por si ou subjetividade sem propósito; pelo contrário, trata-se de um estilo tradicional de cinema em essência, sim, executado com a maestria de um artesão que domina a forma e a técnica. Vem de um tempo em que o nome de Steven Spielberg tinha mais peso do que atualmente.
Sua proficiência está nos primeiros segundos. Os que param para lembrar de momentos icônicos começam e muitas vezes terminam já na primeira seqüência, na sublime e melhor representação do desembarque na Normandia de todos os tempos. O famoso Dia D que não escapa da língua dos professores de História e é sempre mencionado como um ponto de virada da guerra, quando os Aliados começaram a vencer. Simples o bastante para uma descrição, simples demais para quem teve a oportunidade de assistir aos primeiros minutos de “Saving Private Ryan”. Mais do que uma evento importante, costuma-se esquecer de como os corpos se esfacelam sob o fogo de metralhadoras MG 42 com vista plena para centenas de soldadinhos desembarcando na praia. Este filme refresca a memória. Não há elogios suficientes para descrever o trabalho de câmera móvel de Janusz Kamiński acompanhando e organizando o caos de tiros assoviando ao vento, rasgando carne e disseminando morte na juventude em seu caminho. Se a função de uma primeira cena for conquistar a audiência, é difícil encontrar rivais à altura.
Não chegaria ao ponto de dizer que as pessoas esquecem do resto e só focam no desembarque na praia, ele só costuma ser mais citado do que o resto porque o filme não perde tempo com construção lenta para chegar no ponto alto mais tarde, já entrega o melhor já de primeira. Ainda restam mais de duas horas pelas frente, duas maravilhosas horas de uma missão simples desenvolvida em todo seu potencial de ação e drama. Há um foco maior na primeira parte, naturalmente, pois assim como o começo mostra, tal é o nível de competência a ser encontrado repetida e consistentemente. A cinematografia de “Saving Private Ryan” evita atenção demais sobre si, traz clareza e conteúdo sem uma inclinação forte à estética, uma escolha adequada à representação forte dos horrores da guerra tais como são, sem tornar a violência em espetáculo mas também sem poupar imagens fortes. Spielberg se preocupa em escolher os momentos definitivos da ação para torná-la compreensível, ao mesmo tempo que tensa para não perder de vista a torrente de emoções concorrentes de uma situação possivelmente fatal. Ainda resta lógica nas ações a fim de trazer mais complexidade que segurar um gatilho, gastar um pente de metralhadora a 12 tiros por segundo e só ver os inimigos tombarem.
Ver tudo isso acontecendo com uma trilha de John Williams ao fundo parece mais do que se pode pedir. Bem, nesse caso é uma realidade que representa o sonho da música ideal para o filme incrível, aquela que torna difícil imaginar algo melhor ou mais apropriado do que foi criado. Ir longe demais seria dizer que os personagens são um ponto essencial de “Saving Private Ryan”, desenvolvidos a fundo. Nenhum renderia uma análise longa ou um estudo propriamente dito. No entanto, eles mais que cumprem seu trabalho. Tom Hanks como o protagonista obviamente acaba tendo o maior destaque, assim como o tal Ryan do título. Os personagens possuem função e sua presença tem algum tipo de peso na história. Há questionamento, diálogo o suficiente da parte deles para torná-los alguém dentro do grande todo. No mínimo, eles são indivíduos que despertam algum tipo de reação do espectador, simpatia, por exemplo. Isso explica as pessoas ainda lembrarem dos 5 minutos de Vin Diesel nesse filme.
Um dos poucos problemas percebidos agora, na quinta ou sexta vez que assisto, é a conveniência de alguns acontecimentos, comum nos filmes de Spielberg. Quem esquece do Tiranossauro arrebentando a porta quando os Velociraptors emboscam os humanos no final de “Jurassic Park“? Ou Celie ser impedida no último momento antes de cometer um grande erro em “The Color Purple“? “Saving Private Ryan” se permite alguns desses momentos para deixar que a história continue, seja no clássico momento do soldado correndo sem levar nenhum tiro ou na informação que chega na hora certa para mandar os soldados da direção certa. Em termos mais realistas, o filme acabaria nos primeiros minutos. Todavia, vale dizer que também não é um abuso da boa vontade, pois para todo momento de sorte há outro de má sorte, um inconveniente fruto do acaso deixando mais amarga a jornada facilitada outrora.
Acho que a maior felicidade aqui é ver que não é só fama, há um filme excepcional por trás de todas as vezes que as pessoas pensavam em “Saving Private Ryan” toda vez que se falava no gênero Guerra. Ao menos em minha infância foi assim. Nenhum outro trabalho do gênero angariou tanta notoriedade na mesma época. Eu devia ser muito jovem e as pessoas, não tão inclinadas a apreciar o reflexivo “The Thin Red Line“, então ficou fácil para a obra de Steven Spielberg roubar a atenção toda para si. Nem os lançamentos dos próximos anos chegaram perto de a destronar e ofuscar seu reinado de popularidade, mesmo aqueles bem recebidos como “Black Hawk Down”. Mesmo hoje, mais de vinte anos depois do lançamento, o sucesso do resgate do soldado Ryan ainda há de ser igualado.