Em “The Color Purple”, duas irmãs vivem com o pai no interior da Geórgia, mas não se pode chamar isso de convivência familiar saudável. A mãe delas morre e a situação fica pior quando o pai passa a ser mais abusivo do que antes, chegando a separar as duas filhas quando Albert Johnson (Danny Glover) aparece na casa a fim de casar com uma delas. Celie (Whoopi Goldberg) é a escolhida para partir e logo se vê em outra casa sem nenhum traço de lar. Ele segue em frente tolerando a agressividade do marido e o escárnio diário de viver ao seu lado enquanto permanece na busca por sentido em sua vida.
Hoje em dia já não é tão esquisito ver Steven Spielberg associados a dramas e filmes sérios, como diz o senso comum. “Amistad”, “The Post“, “Bridge of Spies“, “Saving Private Ryan” e “Munich” são apenas algumas produções destoantes do blockbuster de verão tão freqüentemente associado ao diretor. Mesmo assim, ainda hoje é difícil não lembrar de ícones como “Jurassic Park” e “Jaws”. E em em 1985, quando todo o repertório prévio era feito dos tais filmes comerciais? O público não sabia ao certo o que pensar da proposta, talvez temendo que um pouco da identidade blockbuster poderia ser invasiva e com razão: isso de fato afeta “The Color Purple” em alguns momentos importantes. Contudo, é uma falha pontual. Todo o resto da obra é tão coerente com a essência da história quanto poderia ser.
A primeira coisa a ser notada em “The Color Purple”, talvez por estranheza, é seu ritmo. Nada extraordinário acontece inicialmente. Aliás, acontece porque os eventos são chocantes por natureza, mas recontados pela protagonista como se fossem banais, sem nenhuma ênfase dramática. Parece um problema de tom, incoerência narrativa piorada por longos trechos da trama seguindo sem um horizonte à vista para nortear o espectador, que não sabe ao certo para onde tudo vai. Os sinais ruins aparentemente estão ali, mas ao menos dizem algo: a obra claramente não é a transposição de um drama em um inapropriado formato dominado pelo diretor. Há uma boa razão para tudo.
Em primeiro lugar, a falta de direcionamento sentida é sutil. Não é o mesmo que desarmonia ou desconexão entre as cenas, como um punhado de cenas e seqüências carentes de unidade entre si. “The Color Purple” fala, acima de tudo, sobre identidade, explicações e porquês, sobre a busca de sentido para todas as coisas que Celie enfrenta diariamente. Por que uma pessoa que nunca maltratou ninguém deve passar por isso? É fútil esperar algo diferente e melhor? Naturalmente, nasce um sentimento de inércia e vazio existencial quando não se tem a resposta para questões vitais como essa. Sem uma boa razão para levantar de manhã e sem algo para acreditar, os dias vêm e vão desacompanhados de importância e peso. A única garantia, se é que existe uma, é a da permanência do status presente.
Celie procura por respostas e traz o espectador junto em sua busca. Como a palavra sugere, busca tem a ver com processo, algo que ainda está em curso e tem chance de não chegar nos resultados concretos desejados. A vida dela é como a de infindáveis pessoas que não vivem a vida de fato, apenas a vêem passando do começo ao fim. É exatamente isso que se vê por um bom tempo em “The Color Purple”: a representação do dia-a-dia de uma mulher que não sabe viver de uma forma diferente da passiva. A vida a chicoteia nas costas, a coloca de joelhos e ela mal tem inclinação para questionar, quem dirá fazer algo a respeito.
O conflito central trata de uma ambivalência perfeitamente explorada pelo elenco principal. De um lado, Whoopi Goldberg protagoniza a dolorosa ilustração do quão longe uma pessoa pode sofrer sem perder a sanidade. A grande estréia da atriz no cinema ostenta a rara qualidade da sutileza, normalmente dominada por aqueles já há muito tempo no ramo; gestos banais e expressões caladas demonstram o que uma pessoa de pouca ação e poucas palavras sente internamente sem manifestar abertamente. Cenas de arrumar a casa, cozinhar, pendurar as roupas e fazer a barba constroem indiretamente os tipos de abuso sofridos gratuitamente. Uma mudança de caráter, de um status tão longamente mantido só poderia acontecer através de um desenvolvimento lento. Ninguém se transforma instantaneamente.
Quase tão impressionante quanto ela é ver Danny Glover, mais conhecido como o querido parceiro de Mel Gibson em “Máquina Mortífera”, sendo a antítese completa da personagem de Goldberg. Enquanto a atriz instiga constantemente a questão dos limites do sofrimento, Glover segue na direção oposta e impressiona com o imensurável mau-caráter de seu personagem. Como uma pessoa pode ser tão cretina sem o mínimo remorso? “The Color Purple” estabelece dois pólos fortes na relação de antagonismo da base de sua trama enquanto a imutabilidade do status de Celie lentamente se encaminha para uma conclusão que, sim, existe.
É justamente nos pontos críticos, clímax e conclusão, que os medos se concretizam na forma de uma inadequada culminação de conflitos. Tais momentos parecem estar sob camisas de força, que os moldam rigidamente na tal estrutura inconfundivelmente estereotipada presente na maioria dos filmes por aí. Depois de construir tão bem uma narrativa dependente do desempenho do elenco, decisões frustrantes chamam atenção para sua existência desnecessária. “The Color Purple” poderia viver sem entrecortes durante o clímax para tentar aumentar a tensão e sem a necessidade de amarrar absolutamente todas as pontas soltas. Com certeza seria melhor também sem alguns arcos soltos, que não conversam com a trama principal construtivamente.
Nem tudo é perfeito em “The Color Purple”. A cinematografia de Allen Daviau, por sua vez, chega muito perto disso ao não demonstrar mácula alguma. A arte da cinematografia costuma ser associada à beleza estética, porém algo mais tocante se encontra nos melhores trabalhos: sensações. As imagens de Daviau possuem isso, entregam a qualidade de um retrato meticulosamente produzido aplicada a imagens em movimento. Eis que vêm à vida o ambiente bucólico de uma casinha de madeira simples cercada de estrada de chão e mato alto, diariamente envoltos no calor constante do sol. Se a cinematografia fosse apenas um pouco melhor do que já é, seria possível sentir o cheiro de grama cortada.
“The Color Purple” é a excelente estréia de Steven Spielberg no mundo dos tais filmes sérios, a prova de que ele poderia encarar tranqüilamente tanto um drama como uma aventura de encantar olhos e emoções. Não surpreendentemente, foi exatamente isso que aconteceu no futuro, quando estrearam dramas e blockbusters ainda melhores que os lançados até então. Basta ver o sucesso de “Jurassic Park” e “Saving Private Ryan” na década seguinte.