1000 anos no futuro da Terra, a humanidade deixa de ser a espécie dominante em um mundo destruído pela poluição e dominado por fungos mortais que criaram a chamada Floresta Tóxica. Restam apenas pequenas nações e vilarejos, dentre eles o Vale do Vento, onde a Princesa Nausicaä e seu pai lideram uma comunidade de camponeses em um estilo de vida simples. O perigo é a constante ameaça dos insetos e seus números infinitos. Agora mutados em criaturas gigantescas como os Ohms e em enxames capazes de devorar uma cidade inteira, eles são facilmente provocados e altamente destrutivos. Como se não fosse o bastante, a ganância faz com que os humanos sejam uma ameaça para si mesmos em sua luta contra a extinção.
“Nausicaä do Vale do Vento” é um daqueles filmes importantes. Seu impacto e legado chegam a superar sua qualidade individual, a qual não é baixa e coloca esse entre os ótimos trabalhos do estúdio. Lançado em 1984, ele é responsável pela criação de nada menos do que o Estúdio Ghibli. Mas como, se essa é uma animação deles? Pois foi seu sucesso que permitiu a fundação formal desse e de outros estúdios. Hoje ele é considerado como parte do repertório oficial por ter sido feito pela mesma equipe, com Hayao Miyazaki na direção e Isao Takahata produzindo. O estúdio inauguraria pouco mais de um ano depois em 1985.
É curioso ver como “Nausicaä do Vale do Vento” é o ponto de partida para muitos trabalhos futuros. Por exemplo, o conceito de usar o vento e os ares como idéia central na trama se tornou recorrente. Ou melhor, colocando em palavras mais simples, é aqui que começa a obsessão com tudo relacionado ao céu: aviões, planadores, naves, castelos no céu, porcos voadores, pilotos e criaturas voadoras. Se não um elemento central, haverá alguma desculpa para introduzir um design complexo de nave ou alguma seqüência em meio às nuvens. Outra similaridade é a relação do homem com o meio ambiente como tema central da obra, sendo ele instrumento da própria ruína e cego a esse fato, sempre buscando um inimigo externo para culpar e travar guerra contra. A resposta às vezes é bem óbvia, mas as pessoas continuam tentando encontrar formas de estarem certas no fim das contas e insistir no erro esperando um resultado diferente.
Vale dizer que “Nausicaä do Vale do Vento” não é um filme ambientalista radical com discurso batido já ouvido centenas de vezes, dessa vez usando um novo disfarce de animação japonesa para mascarar a mesmice. O tema é usado para criar uma ambientação ímpar. É um futuro pós-apocalíptico de renovar as esperanças daqueles cansados de ver cenários desérticos com tudo laranja, cidades caindo aos pedaços, fenômenos climáticos bizarros e escassez de suprimentos. Esse é um mundo bem diferente. Assim como se espera hoje do estúdio, a originalidade se encontra num mundo que por si já tem muito a dizer, desperta a imaginação da audiência já no começo com um personagem mascarado, animais estranhos e um bioma quase alienígena dominando o horizonte. As perguntas surgem aos montes. Nasce uma fagulha de interesse que só cresce conforme o filme mostra que não é um capricho meramente estética.
Pouca coisa está apenas de bonito. Tirando uma ou outra decisão tomada para diferenciar o design e não cair no comum, como o figurino de cada nação, o universo de “Nausicaä do Vale do Vento” traz riqueza de detalhes com integração deles em seu enredo. É bem mais do que um cenário bonito e fantasia a troco de nada, criaturas e plantas incomuns, anomalias orgânicas impossíveis de serem ignoradas. Só a qualidade da animação não iguala a ambição no design por conta da época, da acelerada produção de nove meses e do orçamento relativamente modesto — “O Castelo no Céu”, em comparação, teve um orçamento mais de três vezes maior. Não é ruim de forma alguma, basta não esperar um “Akira” ou algo como os lançamentos posteriores do Ghibli.
O melhor, na verdade, não é nem o visual ou o design de produção, por assim dizer, mas o roteiro de “Nausicaä do Vale do Vento”. A construção de mundo é essencial, mas apenas um dos passos do desenvolvimento de um enredo que equilibra exposição com ação e ainda tem bons personagens no repertório para tornar tudo mais interessante. Sem espaço para estereótipos bestas ou simplificações desnecessárias, é possível encontrar uma protagonista forte e sem pretensão de ser algo que não é, sem habilidades milagrosas que surgem na melhor hora ou um poder inexplicável que a torna uma heroína imbatível. É fácil se importar com ela e com outros coadjuvantes menores, que cativam por um motivo ou outro e têm pelo menos um momento de relevância dentro da narrativa.
A única bizarrice aqui é a trilha sonora. Costumo não ter nada além de elogios para Joe Hisaishi, mas aqui dá para notar que ele ainda não estava completamente em forma, ainda faltava um pouco de polimento tanto no som como na aplicação da trilha acompanhando as imagens, que por vezes começa do nada e até parece videogame antigo. É possível ver que sua trilha sonora em “Nausicaä do Vale do Vento” ainda usa como muleta o som popular de sua época, às vezes parecendo algo direto de “The Terminator” ou algo com trilha synthwave. Só não é uma dependência total porque, escutando as faixas isoladas, é possível perceber traços do talento do compositor que se manifestaria ainda melhor no futuro.
Esse pode não ser o melhor filme do Ghibli, mas é um forte candidato ao mais importante. É aqui que se vê pela primeira vez temas que seriam abordados novamente nos próximos anos. Curiosamente, esse não é um caso de abordagem experimental falha que dá certo em outros trabalhos posteriores mais bem polidos, como “Mad Max” apresentando alguns conceitos crus e melhorando muito em “Mad Max 2” e “Mad Max: Fury Road”. Tirando algumas poucas arestas, não se pode falar o mesmo de “Nausicaä do Vale do Vento”, frequente e corretamente colocado entre os destaques do estúdio. Foi um ótimo começo para um estúdio que até hoje faz história no gênero Animação, um mérito quase unânime entre fãs e nem sempre reconhecido pela Academia.