“Of Human Bondage” é um drama de 1934 dirigido por John Cromwell estrelando Leslie Howard. Foi para ele que os direitos do livro foram comprados na época, quando era uma das estrelas que atraíam mais bilheteria, contudo a obra é lembrada hoje por ser o primeiro grande trabalho da carreira de Bette Davis. Depois de mais de 20 papéis pequenos ao longo de quatro anos, ela lutou pelo papel de uma personagem desprezível e vil, recusado por outras atrizes com medo de estragar suas imagens enquanto Davis estava decidida que era certo. Olhando para trás, não tinha como ser mais.
Philip Carey (Leslie Howard) retorna para a Inglaterra depois de quatro anos estudando pintura em Paris quando dizem que nunca terá futuro como artista. Seu plano agora é estudar e dar continuidade ao seu gosto pela Medicina, um assunto que sempre o atraiu, em parte por causa de sua condição congênita de pé torto. É um ponto de insegurança para o rapaz, mas nada que o impeça de seguir sua vida nem de se apaixonar. Nem sempre a pessoa escolhida é a melhor, mesmo assim Mildred Rogers (Bette Davis) é a única para Philip. Um homem de bem preso a uma garçonete rude e mesquinha que pouco liga para ele.
Certo, é um pouco de exagero dizer que esse é o papel mais certo da carreira de Bette Davis. Com Margo Channing e Regina Giddens entre os grandes papéis, é difícil afirmar que o primeiro trabalho notório seja definidor de carreira, de sua persona ácida e petulante que não deixa a oportunidade passar de fazer um comentário afiado e sempre mantém seu orgulho intacto. Mais fácil considerar que o traço de personalidade mais básico e consistente é de alguém insolente. “Of Human Bondage” traz um exemplo disso na forma mais crua de uma pessoa sem cultura, sem inteligência, dependente apenas de caráter e desejos na manifestação de sua personalidade. Um mau caráter e desejos egoístas. Não é a pessoa que se desejaria para ninguém, mas que chama a atenção porque sua beleza atrai os olhos ao redor. É o súcubo que suga a energia vital do homem através do sexo, a sereia que ilude o pescador com seu canto, a mulher bonita que sempre tem alguém atrás de seus atributos. Os exemplos são vários.
Teoricamente, esse não é um veículo de Bette Davis. A estrela na época era Leslie Howard e é seu nome estampado grande no pôster. É o protagonista, então faz sentido. Já ela se destaca por puro mérito. Não há nada mais que faça sua personagem merecer atenção, já que seu papel é naturalmente de coadjuvante e o roteiro a escreve como uma personagem que poderia ser ignorável nas mãos de alguém mais incompetente. Interpretada de forma seca, seria apenas um instrumento para avançar enredo e nada mais. Davis puxa o foco para si e eleva a personagem para alguém digna de nota, dona de um desgosto diferenciado que não pode ser limitado a um simples adjetivo ou função. É uma pessoa ali, mais ou menos, algo que não se descarta tão rápido quanto outras coisas. “Of Human Bondage” tem sorte pelo bom trabalho de Davis ser um diferencial. Fora isso, não há muito para ser visto.
Do resto das coisas, a atuação de Howard é a que menos merece críticas, se isso servir de consolo, já que não há muitos motivos para elogiá-la também. Ele não é ruim nem particularmente bom. Cumpre sua função sem fazer feio e não mais do que isso. Nunca diria que ele transmite com sutileza as inseguranças de um rapaz educado e de classe com uma deficiência física, como isso o afeta em um nível interno que só ele e poucas pessoas percebem — assim como o espectador — ao passo que a maioria o vê como alguém resoluto. Howard certamente não demonstra isso como Davis exibe nuances de sua futilidade. A trilha sonora de Max Steiner em sua tarefa de delinear o tom de cada cena poderia ser um suplemento, na melhor das hipóteses, ao invés de uma amenização de deslizes. “Of Human Bondage” sofre principalmente por um roteiro sem pontes unificando temas, personagens e idéias sob o disfarce dos eventos na vida dos personagens.
E então fica claro como o dia como “Of Human Bondage” se salva pela interpretação de Bette Davis e por pouco. A idéia central remete à escravidão a qual as pessoas se submetem quando enfatuadas por alguém, como corretamente indicado na tradução brasileira, finalmente. Só que tudo é muito raso. A história escolhe os elementos mais importantes relacionados ao tema e os aplica numa narrativa sem sutileza alguma, usando de uma apresentação óbvia a ponto de insultar não o espectador, mas o próprio tema. Não se tenta explicar as coisas como se a audiência tivesse 6 anos, é apenas um tratamento superficial de relações complexas, reduzida a “João quer Maria porque Maria quer José, então rejeita Ana e faz outras besteiras”. Nunca se desenvolve o enredamento de um relacionamento obsessivo e as âncoras que afundam os iludidos, sequer se aborda a questão de obsessão para justificar alguns comportamentos inacreditáveis.
Até a deficiência é tratada como um símbolo toscamente óbvio de insegurança, e a direção não ajuda a amenizar essa impressão de forma alguma, até piora. Ainda menos sutil que o roteiro, o diretor John Cromwell usa de técnicas bregas de tão pedestres para ilustrar seus pontos e constrói uma narrativa quase desconexa de tão burocrática e procedural. Polimento parece desviar “Of Human Bondage” por muito. Quando algo mais ousado se pretende, surgem recursos visuais no nível do Coiote com fome olhar para o Papa-Léguas e enxergar um frangão assado. E então, depois de apresentar uma sucessão de cenas similares sugerindo desleixo, quase sempre personagens sentados e dizendo o óbvio para manter a lógica, revela-se a progressão pretendida e a estrutura pobre com uma conclusão que não perde a chance de reafirmar o óbvio.